terça-feira, 24 de março de 2020

UM POEMA DE LUÍS CHACHO



GAIVOTAS

«Baixas a bola», atira ela ao homem (dele não sabemos se família afastada ou assim, ou alguém a mais neste momento, apenas que tem mais idade que os outros), no intervalo em que pára os braços, os levanta por entre o nevoeiro, interrompendo seu movimento de lavrar a maré. Faz-lhe companhia, e ajuda com outro braço à mão num ancinho, a criança para cá e lá a afastar o lodo no chão, à procura do que andarão eles à procura. A maré, esta, atrasada em ponto até ao bater na espessa cortina presa ao céu.
O homem afasta-se, por sua vez, até ao limite da sua voz; para que dele se continue a ouvir «amanhã digo a ele que já não lhe voltas a falar, amanhã digo a ele», por cima do musgo e das pedras negras, este conjunto embutido na matéria plástica a maior parte do tempo coberta por água.
Aqui os barcos pousados, presos por cordas a cavilhas grossas, cravadas no mesmo que já vimos.
A canção das gaivotas, pontuando os silêncios entre eles, a virem certeiras a romper o tom cinzento no ar; pousando depois nas poças de água deixada para trás pelo rio, caminhando nelas, a mergulharem o bico na sua pouca profundidade. 

São estas gaivotas que dão princípio à estória; me alertando com a sua presença à margem do que acontece, me imobilizando, me tirando do caminho onde ia, me levando a escrever por cima da tarde em que estamos todos presentes.
«Cala a boca, caralho!», diz por fim a mulher.

Luís Chacho, in Garrotilho, Companhia das Ilhas, Fevereiro de 2020, p. 44.

1 comentário:

Gato Aurélio disse...

muito bom!
(até muito visual, não é...?)