segunda-feira, 4 de maio de 2020

TEATRO DE FANTASMAS


Quando o vírus SARS-CoV-2, comummente conhecido como Covid-19, ainda era apenas coronavírus, li algures aventada a hipótese desta pandemia se transformar para a China no que o desastre de Chernobil significou para a URSS. Não entendi a relação. Iria a Grande Muralha da China derruir com os efeitos da pandemia? Passados alguns meses, encontro entre os dois acontecimentos um ponto de convergência: ambos estão relacionados com modos de interacção entre o ser humano e a natureza, interacção essa indissociável da ideia de progresso e de desenvolvimento que há muito adoptámos. Alguns filósofos dizem que tem a sua origem em tempos bíblicos, nomeadamente quando Deus, antes de se ter arrependido de criar o ser humano, lhe ordenou que tivesse poder sobre os outros animais. A parábola é estimulante, oferece ao homem a capacidade de exercer na terra o mesmo tipo de domínio e de poder que Deus exerce sobre o homem. Feito à imagem e semelhança do Senhor, o ser humano teve aí a porta aberta para um caminho de afastamento e de separação da natureza. Toda a ideia de progresso e de desenvolvimento nas sociedades de inspiração judaico-cristã assenta neste princípio de domínio sobre o outro, daí que tenhamos adoptado o slogan “vai ficar tudo bem” como meta de esperança para uma humanidade capaz de se superar dominando as ameaças que se lhe opõem. Desta feita, como já antes sucedeu, a ameaça é um vírus invisível, mas podia ser a nuvem negra de uma catástrofe nuclear.
   A melíflua palavra de ordem do “vai ficar tudo bem” tem não só a função de trazer esperança aos desesperados, como a de anunciar uma salvação sob a forma de vacina ou outra coisa qualquer. Não sabemos o quê, só sabemos que vai ficar tudo bem. Resta perceber em que Terra Prometida irá ficar bem uma sociedade cada vez mais amedronta perante a possibilidade de ser ela mesma parte integrante da natureza, agora confinada, apartada, alienada, como quiserem, por respeito a declarações e a decretos que vão da emergência à calamidade sem nunca perderem do horizonte a grande ameaça apocalíptica. Se o sedentarismo vem de há muito vencendo a guerra, com o natural contributo, em plena revolução tecnológica, de inúmeros gadgets, não é de todo improvável que a médio prazo ele dê lugar, já não apenas a uma fixação territorial, mas a uma completa desagregação do chamado convívio presencial. Porque este adquiriu entretanto a configuração da morte. Se já dantes era ameaça, obrigando a cuidados redobrados nas ruas da metrópole, nos grandes ajuntamentos, não fosse o outro-depredador atacar o eu-presa, agora é a figura da morte ela mesma, travestida de vírus chifrudo com sua foice de segar.
   Num curto artigo recentemente publicado na muito recomendável revista Flauta de Luz, Raoul Vaneigem usa uma bela imagem para esta realidade do confinamento: «Do lado de fora, o caixão, do lado de dentro, a televisão, a janela aberta para um mundo fechado!» Sobre este mundo fechado há muito a dizer, mas tentarei encurtar o raciocínio saltando já para os efeitos que o mesmo parece produzir no indivíduo. Ele consiste, desde logo, numa abdicação absoluta do privado (entendido aqui no sentido estrito da pessoa humana, da sua vida privada), à qual advém uma despersonalização do indivíduo, devidamente fardado e uniformizado como podemos observar na distopia orwelliana ou na utopia norte-coreana, tendo como princípio geral a aceitação das regras do algoritmo que determina e legitima o que pode ser avistado através da tal janela aberta para um mundo fechado. Se nos pedem/exigem “distanciamento social”, há muito não nos vêm impondo outra coisa que não seja desapego crítico. Porque a vida é confronto, é descoberta, é experiência, é teste, é, sobretudo e talvez mais importante do que tudo, erro, este novo acriticismo onde o erro não tem lugar e o outro fica sem cheiro nem toque, asséptico, distante, leva a uma reconfiguração da normalidade que faz de cada ser humano uma espécie de monstro, zombie ou fantasma. É o homem-bibelô, a estátua que apenas se diz viva por ainda lhe restar a capacidade vital do consumismo.
   Essa coisa a que se dá o nome de “novo normal”, sem se entender o que significa, tal como não se conhece o significado de “desconfinamento”, mas é como se se conhecesse, porque a todos é devido aceitar sem questionar, assimila-se, usa-se e propaga-se como um vírus aparentemente anódino. Para esse dito “novo normal”, dizia eu, encontramos uma metáfora profética na fantasmagoria encenada em algumas peças de Jean-Pierre Sarrazac. Em “A Paixão do Jardineiro”, por exemplo, uma velha judia fala do limbo ao seu assassino, jovem jardineiro com simpatias neo-nazis, na esperança de que ele tome consciência do mal que fez ao assassiná-la. Podemos supor que todo aquele conflito é interior, que tudo se passa na cabeça do jovem jardineiro, que a hipótese de arrependimento é um paradoxo moral que o traz angustiado no cárcere onde cumpre pena. «Peço-te, dá-me razões para te perdoar», roga a vítima ao carrasco, inflectindo o discurso de Jesus quando fala ao pai, mas de algum modo repetindo o nosso face ao Estado.
  «Personagens estranhas numa época estranha», a velha senhora e o jardineiro recordam-nos, pela voz daquela, que não passam de pó, mero efeito, poeira varrida para debaixo do tapete, que é, sem dúvida, o gesto mais facilmente reconhecível neste “novo normal”. Vai tudo passar, depois esquecemos e seguimos as nossas vidas. A fórmula é eficaz, tão eficaz que tem resultados à vista: a desmemória é o mais evidente e pernicioso de todos, pois vem acrescentado de um perigo maior que é o da manipulação da verdade. «Nós somos náufragos amnésicos. Nós vivemos num mundo que se afundou. Mas esquecemo-nos de que a catástrofe aconteceu.» Onde é que eu já li isto? Não é desta desmemória que se fazem valer os novos populismos, tanto no modo como apresentam a História, truncando-a, desapropriando-a de contexto, como até numa metodologia comunicacional cuja falácia mais comum é a da indiscutibilidade de um ponto de vista. Ora bem, num mundo onde as opiniões são como os “likes”, não se discutem, que podemos esperar de massa crítica? Nada. A regra é esquecer para continuar, não olhar para trás, como tantas vezes se ouve a quem nem para trás nem para a frente, apenas para a biqueira dos sapatos.
   Este nada, este apocalipse, encontramo-lo retratado em “Neo, Três Painéis de Apocalipse”, um tríptico onde a terra, o inferno e o céu se misturam e confundem, colocando cada uma das personagens no tal lugar fantasmagórico que agora nos cabe em vida. Vida-limbo. Vida-fantasma. Vida-confinada. Não-vida. Também eu me coloco a possibilidade de exagerar no diagnóstico, mas que outra coisa são senão fantasmas esses milhares de corpos que supomos dentro de caixões atirados para valas comuns fotografadas aereamente com recurso a drones? E que outra coisa são senão fantasmas os de nós, confinados, que assistem a tudo isto em casa, pelo televisor, pelo ecrã de um smartphone ou de um computador, enquanto jantamos frango com batatas fritas? Curiosamente, na peça de Sarrazac, também há desfiles de caixões rudimentares, como os de papelão no Equador, e quem os observe: «Desfilam uma última vez diante de nós os vivos.» Os cenários de devastação contrastam com os seus agentes fanfarrões, seja o arrivista chefe de cozinha que acaba pendurado pelo pescoço, seja o grande matador, à laia de exterminador implacável, que acerca da morte nos lembra: «That’s business. That’s life.» Pelo meio, o absurdo de uma mulher muda que avisa dois jovens imprevidentes e porventura sonhadores: «Que o vosso medo vos proteja!»
   Vindo de um fantasma, este conselho tem a sua ironia: «Que o vosso medo vos proteja!» Logo de seguida o cenário é uma sala-bunker, espaço proteccionista onde, aparentemente, estaremos a salvo da calamidade espreitada à varanda (talvez já sem sonhos nem utopia nem vontade de mudança, apenas um comodismo conforme o tal "novo normal"). Como é de todos sabido, Deus fez-nos à sua imagem e semelhança não descurando, porém, que sendo semelhantes a Ele fôssemos desiguais entre nós. Daí que nem todos tenham varanda, daí que nem todos possam abancar nos seus bunkers privados e devidamente mobilados observando a morte pelo buraco da fechadura. Há deles, entre nós, que têm mesmo de dar um passo para lá da soleira da porta, eventualmente mascarados por uma terceira pele, mas, ainda assim, do lado de fora, na rua, a uma distância profiláctica desse grande mistério que é o outro. O grande edifício do pânico está montado. Sobre ele apetece dizer, para terminar, tal como o desiludido que há 35 anos espera numa sala de um aeroporto: «Queiram desculpar-me mas eu não resisto ao impulso de vos dizer o que sinto neste momento… Confusão profunda. Uma horrível sensação de vacuidade.»

A Paixão do Jardineiro/Neo, Três Painéis de Apocalipse, de Jean-Pierre Sarrazac, com tradução de Isabel Lopes, é uma edição da Companhiadas Ilhas em colaboração com o Teatro da Rainha. Suponho que ainda esteja disponível para encomenda, quer no editor, quer no próprio teatro. Ambos têm páginas on-line com os respectivos contactos.

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