sexta-feira, 9 de outubro de 2020

AUTOBIOGRAFIA DO VERMELHO

Depois de vencer o Prémio Princesa das Astúrias das Letras em Junho passado, a poeta canadiana Anne Carson (n. 1950) foi apontada como uma das principais candidatas ao Nobel da Literatura. Acabou por ser Louise Glück a contemplada, poeta de língua inglesa que não está publicada em livro por cá. De Anne Carson existem dois livros na não (edições), “A beleza do marido” (Fevereiro de 2019), com tradução de Tatiana Faia, e este “Autobiografia do Vermelho" (2.ª edição, Novembro de 2017), com tradução conjunta de João Concha e Ricardo Marques. Teria sido curioso ver o mais aguardado prémio literário do ano atribuído a uma poeta publicada por uma editora sem distribuição na maior rede livreira do país. Mais tarde ou mais cedo será um facto, tendo em conta o panorama geral. Empenhados na novidade descartável, editores financeiramente robustos insistem em desperdiçar papel com decalques do pior que atola o espaço das livrarias. Degeneradas em meras lojas que vendem livros, a maioria das livrarias curva-se a esta ânsia do best-seller que dita o mercado. Mais gritante é tal realidade tratando-se de poesia, pelo que não estranhemos encontrar no catálogo de uma pequena editora os dois únicos livros traduzidos para português de uma das mais prestigiadas poetas da actualidade.

Romance em verso, para respeitar a designação em subtítulo, ou poema-romance, “Autobiografia do Vermelho” foi originalmente publicado em 1998. Natural de Toronto, Carson dedicou-se desde cedo ao estudo dos clássicos gregos. Traduziu Homero, Sófocles, Eurípedes, Safo, entre tantos outros. “Autobiografia do Vermelho” reflecte este trabalho académico, desde logo na configuração mitológica da narrativa, mas também enquanto afirmação de um tempo que transcende as metas fixas da história. Veja-se como o período de vida de Estesícoro surge delineado no proémio: «Ele surgiu depois de Homero e antes de Gertrude Steine, um intervalo difícil para um poeta» (p. 9). Ao poeta grego foi Anne Carson buscar o mito de Gerião, gigante com três cabeças e três troncos, de cor vermelha, habitante de Erítia (cujo significado é “O Lugar Vermelho”). Gerião é a personagem central desta “autobiografia”, título irónico e provocador num livro onde sujeito poético ou narrador lírico são compostos de personalidades emaranhadas.

A voz de Anne Carson surge acompanhada de ecos diversos que a povoam enquanto componentes distintas de um mesmo sangue. A cor vermelha, de resto, pode remeter exactamente para essa consanguinidade literária onde convivem mitologia grega e ameríndia, Emily Dickinson, Gertrude Stein e Virginia Woolf, num complexo de metamorfoses que tudo interliga. O Gerião de “Autobiografia do Vermelho” move-se em espaços diversos, por vezes oníricos, outras vezes identificáveis, entre acções cuja contemporaneidade está intimamente ligada a uma carga hereditária ancestral: «A autobiografia, / em que Gerião trabalhou desde os cinco anos até aos quarenta e quatro, / tinha tomado recentemente a forma / de um ensaio fotográfico. Agora que sou um homem em transição, pensou Gerião / usando a frase que aprendera de — / a porta atingiu a parede assim que Héracles a abriu com um pontapé e entrou / segurando um tabuleiro com duas chávenas e três bananas. / Serviço de quartos, disse Héracles procurando um espaço para pousar o tabuleiro» (p. 66).

A genealogia do monstro alado confunde-se com a daqueles que, segundo a mitologia ameríndia, conhecem o interior dos vulcões e de lá regressam para contar como é. Esta descida aos infernos, por assim dizer, tem qualquer coisa de revelador acerca da criação artística propriamente dita. Seja através da comédia, seja através da tragédia, a criação corresponde a um desdobramento, o que equivale a um processo de despersonalização que podemos identificar com uma espécie de morte. Por cá, Ruy Belo disse-o de modo assertivo num “breve programa para iniciação ao canto”. Gerião refugia-se na fotografia — a arte de fixar instantes —, amaldiçoado por uma infância desprotegida no seio de uma família disfuncional. Acaba envolvido num triângulo amoroso homossexual on the road pelo sul da América. Mitológico, lendário, mas ao mesmo tempo deveras actual, a personagem central desta autobiografia é uma cor que é um corpo que é um som: «O som / era quente como o interior de uma cor» (p. 117). Carson respeita a tradição ao humanizar o monstro, recolocando-o numa paisagem humana que em tudo se assemelha à do nosso tempo histórico. Um tempo de heróis sem nome, acrescente-se. 

3 comentários:

esculpices disse...

Adquiri a edição espanhola dos cardenos Flota.
Não resisti. Monumento.

Anónimo disse...

Ontem encontrei A beleza de marido na fnac do chiado, no minúsculo espaço, meio escondido, que é dedicado à poesia. Ao invés, O Mágico, de JRS, esbofeteia-nos no primeiro escaparate, logo à entrada. Tempos do tempo.

Saudações,

josé luiz tavares

hmbf disse...

O costume. Tristeza.