Clavicórdio (Língua Morta, Fevereiro de
2020) é o primeiro livro em prosa de Andreia C. Faria (n. 1984), poeta que viu a
reunião da sua obra ser distinguida com o Prémio Literário Fundação Inês de
Castro em 2019. Por reunião da obra entendam-se quatro livros publicados entre
2008 e 2017. Não se estranhe que em tão pouco tempo alguém vislumbre razões que
justifiquem a reunião de “uma obra”, já que vem tornando-se habitual este tipo de prática no maior grupo
editorial português. Depois de, em 2010, ter vaticinado dez
anos de vida à publicação de poesia, Vasco Teixeira, da Porto Editora, não só
meteu ao bolso a Assírio & Alvim, como expôs Herberto Helder ao lado de
Sveva Casati Modignani e recrutou uma das estrelas da casa para arquitectar uma
colecção de poesia. Túmulos de lázaros agónicos, as pequenas editoras assistem,
assim, a uma elevação dos seus autores ao reino dos céus, a bem de, à beira do
Senhor, estes conseguirem mais leitores. É esta a conversa, chegar a mais leitores.
Tomara que tamanha multidão dê conta de Clavicórdio, compilação de textos dispersos que, a despeito da disparidade no estilo e de algumas deficiências que uma revisão mais atenta ajudaria a corrigir, prenunciam algo de valoroso. Embora nada o indique, alguns destes textos já haviam sido tornados públicos. Pavões, Pequena Arte de Amar e Peixe-Lua foram outrora publicados na revista on-line Enfermaria 6. O último em 2014, os dois primeiros em 2015. Ao conto intitulado Quando o Milho Alto foi atribuída, em 2009, uma menção honrosa no Prémio Literário José Luís Peixoto. Curiosamente é esta narrativa a que mais deixa a desejar, pelo que denota de convencional e porventura iniciático. É um texto que resulta algo isolado no resto do conjunto, o qual nada tem que ver com o tom folclórico e lendário da aldeia onde Armanda olha «o céu à cata de estrelas» (p. 71).
Mais estimulantes são os três textos anteriormente publicados na Enfermaria 6, desde logo por resistirem a qualquer tipo de classificação em matéria de género. São textos onde ficção, poesia e até ensaio se misturam e equilibram, numa prosa escorreita e sensível que permite identificar uma vocação para a erotização do pensamento. A beleza, o amor, os jogos de sedução, o desejo, a relação do humano com a natureza, sugerem meditações breves que têm tanto de introspectivo como de expansivo. Isto é especialmente evidente numa tendência para a reflexão que o texto Pequena Arte de Amar sublinha do seguinte modo: «Penso no desejo como um homem incapacitado contemplando girassóis. Penso no desejo como um homem prostrado na sua cadeira de rodas — um animal mitológico contemplando girassóis» (p. 44). Algumas páginas depois: «Pensava nos dedos ásperos do meu amante, nas varizes da minha mãe, no suor enegrecido pela fuligem das fábricas nas camisas do meu pai. Pensava nos operários de todo o mundo regressando a casa de camioneta ao fim do dia. Pensava no hálito forte deste homem, na verruga no rosto daquela mulher, na fácil e traiçoeira compaixão que se sente às vezes por um desconhecido» (p. 50).
Privilegiando a expressão poética do pensamento, em detrimento da interacção entre personagens, estes textos aproximam-se de uma prosa que não busca no relato de acontecimentos o sentido da sua existência. O pensamento é o acontecimento em si, como no Caderno, Clavicórdio que ofereceu título ao livro e se lê tal como um caderno de apontamentos, exercício quase de tipo automático e psicanalítico que se apropria livremente de material onírico sem preocupações de coerência. Se na página 8 «Já não há nada para amar», a páginas 17 «Ainda estou entre os que amo» (p. 17). Memórias difusas articulam-se com imagens de proveniências diversas, reminiscências cinematográficas, numa espécie de glossolalia que justapõe os planos do sonho e da realidade.
Dos textos coligidos neste pequeno volume de 91 páginas, aqueles que mais me chamaram a atenção foram, contudo, dois onde o sujeito poético (evitarei chamar-lhe narrador por me parecer que não estamos no domínio exclusivo da ficção narrativa) se abre ao outro. Eva e O Nosso Melhor Ouvido colocam em cena personagens marcantes, com características diferenciadoras que apelam a uma construção imagética desafiante. Eva e David, nomes com ressonâncias bíblicas evidentes, têm em comum dois corpos macerados pela realidade. O de Eva, mutilado pela guerra: «Eva tinha perdido a mão esquerda e a perna do mesmo lado, até à raiz da coxa» (p. 51). O de David, sovado por um mundo sem Deus: «Quando pela primeira vez o vi nu o que mais me impressionou foi o estômago. Parecia ter sido sovado até ficar côncavo, colado às costelas. E as mãos, que revelavam o seu peso num corpo tão magro, morenas, contorcidas de veias numa inusitada proximidade com a lua» (p. 83).
Se o primeiro destes dois contos traz à memória O Nervo Ótico, da argentina María Gainza (n. 1975), não só pela contiguidade operada entre o espaço museológico e uma memória deformadora dos acontecimentos, mas também pela ambiguidade gerada entre aquele que narra e o que observa, já a frase inicial de O Nosso Melhor Ouvido enviou-me directamente para Os Passos em Volta, de Herberto Helder (n. 1930 – m. 2015), livro com o qual este Clavicórdio parece suportar algumas afinidades. Não obstante, a Eva de Andreia C. Faria coloca o feminino no centro da reflexão, questionando o que historicamente sobre ele pesa — beleza, gentileza, sedução —,a partir da imagem de um corpo amputado, inspirador como uma Vénus de Milo, do sofrimento, da maldade e da crueldade que são, a par do amor, da amizade, o magma de uma humanidade sujeita à tirania do tempo e em continuada transformação:
«Deve-se saber sofrer sem
resignação, mas também sem revolta, era o que dizia a mim mesma. Também sem
espanto. Sofrer como se o sofrimento não se me dirigisse. E, no entanto, a quem
mais poderia estar ele destinado, o meu sofrimento? Eu não sofria por amor do
mundo. Não encontrava na empatia o bem electrizante, a hipótese de subversão
dentro do mal. Mas agora Eva é o amor do mundo. Ela é todo o sofrimento e a sua
recusa. É a beleza de tudo o que é cruel. O deleite perante a injustiça. Não
perdeu o interesse pela vida, Eva.»
Tomara que tamanha multidão dê conta de Clavicórdio, compilação de textos dispersos que, a despeito da disparidade no estilo e de algumas deficiências que uma revisão mais atenta ajudaria a corrigir, prenunciam algo de valoroso. Embora nada o indique, alguns destes textos já haviam sido tornados públicos. Pavões, Pequena Arte de Amar e Peixe-Lua foram outrora publicados na revista on-line Enfermaria 6. O último em 2014, os dois primeiros em 2015. Ao conto intitulado Quando o Milho Alto foi atribuída, em 2009, uma menção honrosa no Prémio Literário José Luís Peixoto. Curiosamente é esta narrativa a que mais deixa a desejar, pelo que denota de convencional e porventura iniciático. É um texto que resulta algo isolado no resto do conjunto, o qual nada tem que ver com o tom folclórico e lendário da aldeia onde Armanda olha «o céu à cata de estrelas» (p. 71).
Mais estimulantes são os três textos anteriormente publicados na Enfermaria 6, desde logo por resistirem a qualquer tipo de classificação em matéria de género. São textos onde ficção, poesia e até ensaio se misturam e equilibram, numa prosa escorreita e sensível que permite identificar uma vocação para a erotização do pensamento. A beleza, o amor, os jogos de sedução, o desejo, a relação do humano com a natureza, sugerem meditações breves que têm tanto de introspectivo como de expansivo. Isto é especialmente evidente numa tendência para a reflexão que o texto Pequena Arte de Amar sublinha do seguinte modo: «Penso no desejo como um homem incapacitado contemplando girassóis. Penso no desejo como um homem prostrado na sua cadeira de rodas — um animal mitológico contemplando girassóis» (p. 44). Algumas páginas depois: «Pensava nos dedos ásperos do meu amante, nas varizes da minha mãe, no suor enegrecido pela fuligem das fábricas nas camisas do meu pai. Pensava nos operários de todo o mundo regressando a casa de camioneta ao fim do dia. Pensava no hálito forte deste homem, na verruga no rosto daquela mulher, na fácil e traiçoeira compaixão que se sente às vezes por um desconhecido» (p. 50).
Privilegiando a expressão poética do pensamento, em detrimento da interacção entre personagens, estes textos aproximam-se de uma prosa que não busca no relato de acontecimentos o sentido da sua existência. O pensamento é o acontecimento em si, como no Caderno, Clavicórdio que ofereceu título ao livro e se lê tal como um caderno de apontamentos, exercício quase de tipo automático e psicanalítico que se apropria livremente de material onírico sem preocupações de coerência. Se na página 8 «Já não há nada para amar», a páginas 17 «Ainda estou entre os que amo» (p. 17). Memórias difusas articulam-se com imagens de proveniências diversas, reminiscências cinematográficas, numa espécie de glossolalia que justapõe os planos do sonho e da realidade.
Dos textos coligidos neste pequeno volume de 91 páginas, aqueles que mais me chamaram a atenção foram, contudo, dois onde o sujeito poético (evitarei chamar-lhe narrador por me parecer que não estamos no domínio exclusivo da ficção narrativa) se abre ao outro. Eva e O Nosso Melhor Ouvido colocam em cena personagens marcantes, com características diferenciadoras que apelam a uma construção imagética desafiante. Eva e David, nomes com ressonâncias bíblicas evidentes, têm em comum dois corpos macerados pela realidade. O de Eva, mutilado pela guerra: «Eva tinha perdido a mão esquerda e a perna do mesmo lado, até à raiz da coxa» (p. 51). O de David, sovado por um mundo sem Deus: «Quando pela primeira vez o vi nu o que mais me impressionou foi o estômago. Parecia ter sido sovado até ficar côncavo, colado às costelas. E as mãos, que revelavam o seu peso num corpo tão magro, morenas, contorcidas de veias numa inusitada proximidade com a lua» (p. 83).
Se o primeiro destes dois contos traz à memória O Nervo Ótico, da argentina María Gainza (n. 1975), não só pela contiguidade operada entre o espaço museológico e uma memória deformadora dos acontecimentos, mas também pela ambiguidade gerada entre aquele que narra e o que observa, já a frase inicial de O Nosso Melhor Ouvido enviou-me directamente para Os Passos em Volta, de Herberto Helder (n. 1930 – m. 2015), livro com o qual este Clavicórdio parece suportar algumas afinidades. Não obstante, a Eva de Andreia C. Faria coloca o feminino no centro da reflexão, questionando o que historicamente sobre ele pesa — beleza, gentileza, sedução —,a partir da imagem de um corpo amputado, inspirador como uma Vénus de Milo, do sofrimento, da maldade e da crueldade que são, a par do amor, da amizade, o magma de uma humanidade sujeita à tirania do tempo e em continuada transformação:
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