domingo, 8 de novembro de 2020

CLAVICÓRDIO

Clavicórdio (Língua Morta, Fevereiro de 2020) é o primeiro livro em prosa de Andreia C. Faria (n. 1984), poeta que viu a reunião da sua obra ser distinguida com o Prémio Literário Fundação Inês de Castro em 2019. Por reunião da obra entendam-se quatro livros publicados entre 2008 e 2017. Não se estranhe que em tão pouco tempo alguém vislumbre razões que justifiquem a reunião de “uma obra”, já que vem tornando-se habitual este tipo de prática no maior grupo editorial português. Depois de, em 2010, ter vaticinado dez anos de vida à publicação de poesia, Vasco Teixeira, da Porto Editora, não só meteu ao bolso a Assírio & Alvim, como expôs Herberto Helder ao lado de Sveva Casati Modignani e recrutou uma das estrelas da casa para arquitectar uma colecção de poesia. Túmulos de lázaros agónicos, as pequenas editoras assistem, assim, a uma elevação dos seus autores ao reino dos céus, a bem de, à beira do Senhor, estes conseguirem mais leitores. É esta a conversa, chegar a mais leitores.
   Tomara que tamanha multidão dê conta de Clavicórdio, compilação de textos dispersos que, a despeito da disparidade no estilo e de algumas deficiências que uma revisão mais atenta ajudaria a corrigir, prenunciam algo de valoroso. Embora nada o indique, alguns destes textos já haviam sido tornados públicos. Pavões, Pequena Arte de Amar e Peixe-Lua foram outrora publicados na revista on-line Enfermaria 6. O último em 2014, os dois primeiros em 2015. Ao conto intitulado Quando o Milho Alto foi atribuída, em 2009, uma menção honrosa no Prémio Literário José Luís Peixoto. Curiosamente é esta narrativa a que mais deixa a desejar, pelo que denota de convencional e porventura iniciático. É um texto que resulta algo isolado no resto do conjunto, o qual nada tem que ver com o tom folclórico e lendário da aldeia onde Armanda olha «o céu à cata de estrelas» (p. 71).
   Mais estimulantes são os três textos anteriormente publicados na Enfermaria 6, desde logo por resistirem a qualquer tipo de classificação em matéria de género. São textos onde ficção, poesia e até ensaio se misturam e equilibram, numa prosa escorreita e sensível que permite identificar uma vocação para a erotização do pensamento. A beleza, o amor, os jogos de sedução, o desejo, a relação do humano com a natureza, sugerem meditações breves que têm tanto de introspectivo como de expansivo. Isto é especialmente evidente numa tendência para a reflexão que o texto Pequena Arte de Amar sublinha do seguinte modo: «Penso no desejo como um homem incapacitado contemplando girassóis. Penso no desejo como um homem prostrado na sua cadeira de rodas um animal mitológico contemplando girassóis» (p. 44). Algumas páginas depois: «Pensava nos dedos ásperos do meu amante, nas varizes da minha mãe, no suor enegrecido pela fuligem das fábricas nas camisas do meu pai. Pensava nos operários de todo o mundo regressando a casa de camioneta ao fim do dia. Pensava no hálito forte deste homem, na verruga no rosto daquela mulher, na fácil e traiçoeira compaixão que se sente às vezes por um desconhecido» (p. 50).
   Privilegiando a expressão poética do pensamento, em detrimento da interacção entre personagens, estes textos aproximam-se de uma prosa que não busca no relato de acontecimentos o sentido da sua existência. O pensamento é o acontecimento em si, como no Caderno, Clavicórdio que ofereceu título ao livro e se lê tal como um caderno de apontamentos, exercício quase de tipo automático e psicanalítico que se apropria livremente de material onírico sem preocupações de coerência. Se na página 8 «Já não há nada para amar», a páginas 17 «Ainda estou entre os que amo» (p. 17). Memórias difusas articulam-se com imagens de proveniências diversas, reminiscências cinematográficas, numa espécie de glossolalia que justapõe os planos do sonho e da realidade.
   Dos textos coligidos neste pequeno volume de 91 páginas, aqueles que mais me chamaram a atenção foram, contudo, dois onde o sujeito poético (evitarei chamar-lhe narrador por me parecer que não estamos no domínio exclusivo da ficção narrativa) se abre ao outro. Eva e O Nosso Melhor Ouvido colocam em cena personagens marcantes, com características diferenciadoras que apelam a uma construção imagética desafiante. Eva e David, nomes com ressonâncias bíblicas evidentes, têm em comum dois corpos macerados pela realidade. O de Eva, mutilado pela guerra: «Eva tinha perdido a mão esquerda e a perna do mesmo lado, até à raiz da coxa» (p. 51). O de David, sovado por um mundo sem Deus: «Quando pela primeira vez o vi nu o que mais me impressionou foi o estômago. Parecia ter sido sovado até ficar côncavo, colado às costelas. E as mãos, que revelavam o seu peso num corpo tão magro, morenas, contorcidas de veias numa inusitada proximidade com a lua» (p. 83).
   Se o primeiro destes dois contos traz à memória O Nervo Ótico, da argentina María Gainza (n. 1975), não só pela contiguidade operada entre o espaço museológico e uma memória deformadora dos acontecimentos, mas também pela ambiguidade gerada entre aquele que narra e o que observa, já a frase inicial de O Nosso Melhor Ouvido enviou-me directamente para Os Passos em Volta, de Herberto Helder (n. 1930 – m. 2015), livro com o qual este Clavicórdio parece suportar algumas afinidades. Não obstante, a Eva de Andreia C. Faria coloca o feminino no centro da reflexão, questionando o que historicamente sobre ele pesa beleza, gentileza, sedução —,a partir da imagem de um corpo amputado, inspirador como uma Vénus de Milo, do sofrimento, da maldade e da crueldade que são, a par do amor, da amizade, o magma de uma humanidade sujeita à tirania do tempo e em continuada transformação:  
 
«Deve-se saber sofrer sem resignação, mas também sem revolta, era o que dizia a mim mesma. Também sem espanto. Sofrer como se o sofrimento não se me dirigisse. E, no entanto, a quem mais poderia estar ele destinado, o meu sofrimento? Eu não sofria por amor do mundo. Não encontrava na empatia o bem electrizante, a hipótese de subversão dentro do mal. Mas agora Eva é o amor do mundo. Ela é todo o sofrimento e a sua recusa. É a beleza de tudo o que é cruel. O deleite perante a injustiça. Não perdeu o interesse pela vida, Eva.»

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