quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

ALICE’S WONDERLAND (1959)


 

Os fascistas voltaram a marchar em Itália. Em pleno confinamento, fizeram a sua parada ao estilo militar, levantaram o braço para a frente como na Roma antiga, a dos imperadores que excitavam Benito Mussolini. Gritaram alto as palavras de ordem: «Per tutti i camerati caduti: presente!» Tem sido assim, de ano para ano. Discriminam, odeiam, promovem a violência sobre tudo quanto se lhes oponha, fazem-se valer da liberdade de expressão para atacar a democracia. Incapaz de os confrontar, sob pena de cair em contradição, a democracia dá-lhes espaço, no espaço montam palco, encenam e representam peças virais para uma plateia de raivosos que cresce de dia para dia. Um arrepio percorre-me a coluna vertebral quando volto a ouvir a voz de Charles Mingus na abertura do célebre Town Hall Concert, recitando um poema de sua autoria que arrisco agora traduzir:
 
LIBERDADE
 
Esta mula não é de Moscovo
Esta mula não é do sul
Mas esta mula sabe algumas coisas
Que aprendeu de boca-a-boca
 
Esta mula pode ser apelidada de teimosa e de preguiçosa
Mas esta mula pode estar a trabalhar de forma hábil
Aprendendo e planeando e esperando
Por um certo tipo sagrado de dia
Um dia em que queimar fachos e cruzes não é brincadeira de crianças
Mas um louco na sua mais ardente floração
Cuja paixão é a imperfeição e o seu noivo mais brilhante
 
Daí que aguenta firme, jovem mula
Acalma com contemplação
O todo ardente e a coxa dorida
A tua teimosia mantém-se viva
E a ansiedade prestes a morrer
 
Liberdade para o teu paizinho
Liberdade para a tua mãezinha
Liberdade para os teus confrades
Mas nenhuma liberdade para mim

 
O poema remonta ao famigerado período da caça às bruxas comunistas, mas nele ecoam imagens de outras perseguições. A mesma devoção à liberdade reconhece-se em todo o reportório deste contrabaixista com uma biografia que acabou por se tornar símbolo indelével do activismo contra a injustiça racial, assumindo uma música diferente, singular e única como a vida de um homem. O meu álbum preferido é Mingus Ah Um, pelo lado festivo e espiritual ao estilo gospel. Faz-me crer em Deus. Mas hoje prefiro mergulhar noutras águas, estou expectante e ligeiramente melancólico. Obrigaram-me a ver um documentário sobre vidas passadas e, mais uma vez, fiquei sem perceber o interesse da reencarnação. Por que não se contentam os homens com o presente que é a vida que têm? Para quê desperdiçá-la com a possibilidade inconsequente de uma vida anterior e a hipótese de uma fastidiosa eternidade? Está um dia de Inverno claro e frio. O sol há-de dar a sua volta ao mundo mais uma vez. O poema está escrito.

1 comentário:

fernando machado silva disse...

O charles mingus é um dos meus compositores favoritos do século xx - ele não compõe jazz, mas música. Há um álbum, o "pre-bird" se não me engano com uma composição fenomenal. O "tijuana moods" é energizante. O seu "piano improvisations" é de uma melancolia profunda. Mas nada, nada se compara ao "the black saint and the sinner lady", cujo segundo movimento, juro, a trompete fala contigo e cada instrumento te dá um soco no estômago. É alucinante e dá voz a um romance entre dois marginalizados.tenho gostado muito destes teus poemas. Um grande abraço.