O actor saltou uma frase no decorrer do ensaio, falhou a marcação, sorriu para o texto e recebeu de volta uma reprimenda, voltou a falhar, agora propositadamente, e o texto aceitou a entorse, improvisou gestos, aproveitando uns, dispensando outros, o actor brincou com as palavras imitando-lhes o sotaque, disse complica e voltou a dizer com pelica, deixando o silêncio passar, depois voltou as costas ao público, imaginando a sala cheia, e, redireccionando-se para as cadeiras vazias, declamou com gravidade: uma vez concebidos / mais vale não perder tempo / com o sentido da vida / da foda nascemos / para acabarmos fodidos. Então uma estátua ganhou vida e cantou a canção de Kurt Weill. Seria a voz de Mary Martin ou a de Marlene Dietrich? Talvez a de Ute Lemper, muitos anos depois. Não era Lotte Lenya, com quem Weill casou duas vezes como quem foge da prisão para a ela voltar. Serias tu? Seria eu? Ao amor, essa arte obsoleta, o actor deu corpo fazendo de estátua.
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