sexta-feira, 5 de março de 2021

A ARCA

 


(…)
 
CCXCI
 
Que preciosa cousa é o cálix
Dum lírio: aproveita a passagem
Fugaz do seu perfume. Amanhã
Por força que haverá um lírio, outro,
Mas nunca mais esta brancura mesma,
E nunca mais igual, outro momento.
Que preciosa cousa é estar presente
Ao cálix deste lírio. Que preciosa
Cousa é ser, na passagem, o perfume
Fugaz desta brancura e não de outra.
 
CCXCII
 
Tudo já se cumpriu e tudo é novo.
Tudo está por fazer, pois nada existe,
Ainda. Não há mais estradas que as que
Os teus pés vão abrindo, e o vento apaga
Logo, farejador, cão do teu rasto.
Pelos marcos solenes que te apontam
Os caminhos de qualquer fé que seja,
Suspendem-se, enforcados, verdadeiros
Enganos. Onde, alegre, te acene
Nada, mas nada, é esse o teu caminho!
 
CCXCIII
 
Há um só modo de aspirares a ser
Parte do todo e todo, nessa parte.
É trabalhar teu campo, no interior
Das têmporas, semeá-lo e comê-lo
Girando em sementeiras e colheitas
Em cada breve instante e sem pousio.
No laborar do teu, outros alcanças,
Como o teu, campos. De outros e já teus.
O todo são as partes encontradas
Na parte já fracção de um outro todo.
 
CCXCIV
 
Nem há vias de leite, nem de azebre,
Pois que nem há, tão pouco, via alguma.
Há percursos, e todos são possíveis
Logo que sãos, mondados de intolerância.
Ignora o guerreiro e o fátuo sábio
Que diz saber de ti, e se ignora
Até na fatuidade. Têem membros,
Cabeças com cabelo e mãos com unhas.
Terão um sexo, idade e serventia.
E assemelham-se a homens, não o sendo.
 
CCXCV
 
Ignora as chamadas aos deveres
Contrários à razão da vida e à tua.
Obedecer, é cómoda e covarde
Manobra de senhor proto-escravo
Pisando o falso mosto das razões
Para obter o vinho das cegueiras.
De um pequeno diferendo, aplacável
Por si só, ou com pachos de tempo,
Farás mais grada cousa, intervindo.
Com mil intervenções nasce uma guerra.
 
CCXCVI
 
Boas tenções, mil. Mil! Mil ovos põem
Na ferida, susceptível sensitiva.
Nascer mil larvas da provocação
A rentilhar as franjas de mil nervos.
E não há mais parança nem regresso
Nem possível calmia de propósitos.
Parcelas de razão das sem eazões
Somam-se à desrazão de tanto orgulho
Falso. Ignora pois, a poedeira
Doente. Vê. Sem coro, ela é sadia!
 
CCXCVII
 
Se o teu chefe não for o mais humilde
No falar e na acção e no aceitar
Da alheia fala e do agir alheio,
Retira-lhe a chefia. Se ele não
Souber pedir, não saberá, no
Mando, ver e encontrar quem execute
Alta ou baixa função. E, se baseia
Em pura força, impura autoridade
É porque já, poedeira, agita a asa
E prepara a postura, o bocacú.
 
CCXCVIII
 
E ao bocacú, só riso lavará
O seu simples sistema, todo em tripa.
Digere vida, mais que a morte. Ingere!
Pois, acumulativo, se sustenta
De perpétuo ingerir, que não de vida.
Mais: destrói-a. É estéril. Enquanto a morte
Tudo devolve, honesta regateira.
Um riso fresco e cru e bem a tempo,
(Antes da força intimidar os simples)
Será suficiente e estricta arma.
 
CCXCIX
 
Disto tudo, passai palavra, ouvido
Boca, boca ouvido, à tocaia do
Esbirro, e seu engano e seu desfrute.
Não é nossa, a palavra, transportamo-la
Em cadeias de gesto e dedicadas
Audácias de querer melhor. ao fim
Desta sem fim cadeia, está mais nada
Que as reservas de amor acumuladas
Para a grande invernia do universo,
E geradoras de universos, outros.
 
CCC
 
De altos senhores sou escravo. Eu, não vós.
Exijo para mim toda a vileza
Deste espúrio comércio intencional
Com os deuses. Mas mais repezo ainda
Estaria hoje, olhando-vos crescer
A ignomínia dum ter pai que não soube
Dar-vos da escravidão a áspera ideia.
Esta vossa legítima. Glória minha.
Filho rebelde ao pai, sê-lo-á aos deuses
E, do humano, é penhor futuro.
 
João Pedro Grabato Dias, in A Arca. Ode Didáctica na Primeira Pessoa, tradução do sânskrito ptolomaico e versão contida, textos Caliban, edição do autor, Lourenço Marques, Setembro de 1971, s/p.

2 comentários:

Gonçalo Fernandes disse...

Contenção verbal? Linguagem despojada, límpida e cristalina? - perguntou o livro de bolso ao gigantesco Manual de Boas Práticas.

Aqui fica mais uma passagem - aquela em que Noé fala aos filhos sobre o amor (início na estrofe CXCI):


Rege a lua o amor dos animais
mas nosso amor é o que rege as luas.
Amarás pela tarde, ou na manhã
ou noite fora, pois não há momento
propício para amar, antes o amor
fará propício todo algum momento.
E se, a alguém, traz escândalo o derrame
de tanto sémen, olha-o com suspeita
pois a quem sembra o amor coisa excessiva
será falaz enredador de guerras.

Por tuas mãos o visgo de amorosos
moluscos, corra como o mel no figo
como um prazer de pranto agradecido.
E em tua boca, a serpe da carícia
multifurque o sonho dum veneno
insidioso, em criptas de espantos.
E o teu falo, furão contente e lesto
pela lura apertada da toupeira,
volte à luz, fungador, saciado e pronto
a outra digressão pelo silêncio.

A beleza do dar está no saber
merecer a aventura quando chega.
No amor humano os corpos são agentes
do mesmo verbo. Dar, é toda a gama
dos tempos já passados ou futuros
da mesma acção presente e prefeita.
Falo em amor e creio-me no ponto
mais lúcido dos seres. O Universo
é amor sem mesura, organizado,
orgasmos transladando na volúpia.

Estou para velho e em mim falece já
a prontidão, que não o apetite.
Faltara ele e não seria digno
de estar vivo e olhando a vida. Ó
meus filhos, quando passa a mocinha
sinto em mim a alegria a espigar dentes
e os nervos quentes, a rinchar ao mote.
Não será depravado o que olha
com fundo amor os corpos. Cego fora.
Mais olharia odores, mas olharia!

hmbf disse...

Excelente.