sexta-feira, 30 de abril de 2021

DESVIOS

 

   «— Daniel, a tua pobre mãe ainda teve a sorte de morrer instantaneamente.
   — Sim, pai.
   — Mas tu, se te quisesses matar?»
   Aquilo que eu ia dizer em maneira de resposta era grave, muito grave, mas um demónio já me forçava. «Meu pai, eu escolheria um modo discreto, para não prejudicar aqueles que usam o meu nome. Uma tisana em cima do fogão a gás; a janela bem fechada, abro a torneira de segurança; esqueço-me de usar fósforos. Reputação salva e o tempo de dizer o confiteor
   No dia seguinte, a criada do meu pai veio informar-me de que o senhor fora vítima e uma acidente.
   Tinham-no encontrado na cozinha, a cara pintada de azul, uma caçarola em cima do fogão que ele se esquecera de acender.
 
Vem nas páginas 42-43 de Desvios, primeiro romance de René Crevel (1900-1935) agora editado em português, com tradução de Diogo Paiva, pela Livraria Snob. São palavras que ressoam como um oráculo. Crevel suicidou-se exactamente da mesma forma, já depois de lhe haverem diagnosticado tuberculose. O pai enforcara-se quando o escritor tinha apenas 14 anos, experiência evocada nas páginas de O Meu Corpo e Eu, segundo livro, editado por cá pela Sistema Solar, em 2014, com tradução de Aníbal Fernandes. Em língua portuguesa estão ainda disponíveis A Morte Difícil (Sistema Solar, 2018) e As Irmãs Brontë, Filhas do Vento (Assírio & Alvim, 2005).
   Nascido e criado no seio de uma família burguesa, tornou-se um autor de culto depois de se juntar aos surrealistas. A primeira aproximação deu-se, precisamente, no ano da estreia com Détours (1924). Antes, tinha o Autor privado com Tristan Tzara partilhando os entusiasmos da revolução Dada. O diagnóstico da tuberculose data também desse período, pelo que não é de espantar a pressa de viver incutida na realização de uma obra fulgurante. Exílios frequentes em sanatórios terão alimentando um sentimento de solidão que atravessa todos os seus escritos, enquanto marca existencial que nunca se permitir submergir na melancolia. Antes pelo contrário, a prosa de Crevel, e isso nota-se bem neste Desvios, está cravejada de tiradas irónicas e cínicas, um humor muito ao gosto surrealista, certo, com as pontas afiadas aos hábitos e costumes da sociedade burguesa. A propósito do convite para uma vernissage nas Tulherias, Daniel, o jovem no núcleo da narrativa, não deixa escapar a oportunidade para desmascarar parte do ambiente cultural da sua época (e da nossa, que há vícios que perduram sem remédio): «Noutro tempo, eu teria pedido a Léila que me acompanhasse, ela conseguia nunca passar despercebida, e eu teria tido o prazer de me encontrar com uma dessas mulheres pelas quais, ao que parece, têm lugar as exposições, bem mais do que pelas telas ou esculturas» (p. 133).
   Não obstante, este escritor de olhar cortante foi figura pouco pacífica no movimento surrealista. Parece ter tido um papel relevante nas tentativas de aproximação do surrealismo ao comunismo, mas sobre ele pesavam também outras preocupações. Os livros desmontam a hipocrisia latente das origens burguesas — logo no início de Desvios, a mãe de Daniel é descrita como encarnando, «no género medíocre, a burguesa dita com cabeça» (p. 11) —, expõem a bissexualidade através de uma hábil desconstrução dos mitos ligados quer à feminilidade, quer à masculinidade, mergulham nas raízes do suicídio tornando-o tema recorrente e assumindo-o como solução para o desespero (a esperança de Daniel é tida como «hábito cobarde»), exploram as relações amorosas sem lhes negar o que quer que seja a que tenham direito: paixão, traição, violência, dores de corno. E, mais significativo, assumem perante a vida um lapidar poder de síntese: «A primeira vez que me olhei num espelho, vi duas rugas na minha cara; temi descobrir-me velho de repente, sem nunca ter sido novo» (p. 62). Entalado como um castiçal no centro de um triângulo amoroso, Daniel é aquele que descobre liberdade na solidão. Desviando-se de si? Dos outros? Não custa ler o livro para perceber.

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