A obra é curta, como o foi a vida. René Crevel (1900-1935)
suicidou-se quando ainda não tinha completado 35 anos de vida. “Na nossa
família suicidamo-nos muito”, é uma das suas frases que ficou. Por ser
verdadeira, literal. O pai enforcou-se em 1914, e Crevel conta no mais célebre
dos seus livros, o segundo, publicado em 1925, que «a obsessão do suicídio
permanecerá (..) como a melhor e a pior garantia contra o suicídio» (O Meu
Corpo e Eu, Sistema Solar, Outubro de 2014). Já antes, Aníbal Fernandes, a quem
devemos o esforço de divulgação desta obra em Portugal, tinha mencionado na
apresentação de As Irmãs Brontë, Filhas do Vento (Assírio & Alvim, Abril de
2005) que Crevel fora obrigado pela mãe a ver o corpo do pai enforcado. A
impressão ter-lhe-á ficado, então, como uma obsessão, uma impressão incrustada
na mente, cinzelada no corpo pela dor, expandida pela obra que pode toda ela ser lida como uma
espécie de carta de despedida.
A Morte Difícil, o terceiro livro, foi originalmente
publicado em 1926. Nesta versão portuguesa da Sistema Solar, datada de Outubro
de 2018, Aníbal Fernandes brinda-nos novamente com uma apresentação impagável
que aclara a relação profunda e conflituosa do autor com o surrealismo e com o
comunismo. Razões de ser do conflito: desde logo, a homossexualidade manifesta;
depois, a mania dos romances. A Morte Difícil não esconde nada. Antes pelo
contrário, parece querer mostrar tudo. O jovem Pierre Dumont é a personagem
central. Burguês de herança, é filho de um coronel que a sífilis enlouqueceu
condenando-o a escrever repetidamente a mesma carta a Madame de Pompadour. Se a
loucura do pai merece de Pierre alguma condescendência, por lhe garantir um
quotidiano menos entediante, já o burguesismo da mãe só lhe inspira desprezo.
Madame Dumont-Dufour também não tem a melhor opinião do filho, que começa por censurar
pelas más companhias. A excepção talvez pudesse ser Diane, filha da “irmã na
miséria” Madame Blok. Viúva de um suicida.
Mas Diane também «anda sempre por montes e vales —
entenda-se por isto o cinema, o teatro, a casa de amigos e Deus sabe que outros
lugares» (p. 20). Extraordinariamente irónico, o primeiro capítulo do livro
oferece espaço à perspectiva das duas mães apoquentadas. Esposas falhadas, investem
nos filhos todo o seu desespero. O que as separa dos filhos não é apenas
geracional, tem que ver com modos de encarar a vida e as paixões. Se para Madame
Dumont-Dufour e Madame Blok o amor é sujo e cheira mal, para Pierre e Diane é
uma aventura que merece ser explorada para lá de qualquer limite. A
transgressão estimula-os, o gozo da transgressão é um valor que permite superar
o tédio forçado pela família. Degenerado, diz Madame Dumont-Dufour do filho.
Por causa das drogas que o acusa de tomar e das más companhias que lhe censura,
entre os quais esse vadio vindo das Américas de seu nome Arthur Bruggle. O
vadio que Pierre ama.
Neste romance, René Crevel persegue a sua personagem como
a sombra persegue o corpo. Guia-nos de um estado de ironia e aparente
autoconfiança até à dissolução de um ser fragilizado, desintegrado, só. O
percurso é o da ilusão do amor ao amor desiludido, do qual restará apenas
confusão e desespero. Entediado com o “folclore de família”, Pierre Dumont
corta relações com a mãe para se lançar nos braços do amado. Mas esses braços
querem-se livres, soltos, sem fardos. Afasta-se de Diane como a sensatez se
afasta na mente de um louco: «Diane sabe tudo, pelo menos tudo o que Pierre
deve fazer, ver, ouvir, ler para se sentir feliz. Diane é o bom senso de
Pierre, que se enternece e pensa ter acabado por encontrar nela a felicidade»
(p. 75). Interrogamo-nos até que ponto esta herdeira de um suicida não possa
ser uma das faces do rosto dividido e atormentado de Crevel: «a obsessão do
suicídio permanecerá (..) como a melhor e a pior garantia contra o suicídio».
Em qualquer uma das faces predomina uma necessidade de
libertação, ambas surgem acorrentadas a forças exteriores que condicionam o
ser. Se o suicídio é o problema filosófico por excelência, talvez o seja
precisamente por esta razão. Talvez na consciência daquele que se mata a morte
surja como a única via possível para a liberdade absoluta. Daí que os
surrealistas o tenham acolhido com especial eloquência. A necessidade tem na liberdade o seu elemento essencial, o artista respira dela como apenas do
ar vivem as pessoas vulgares. E Pierre, como a páginas tantas se afirma, tem
dificuldades de respiração. O ciúme entope-lhe as vias respiratórias,
deixá-lo-á só e desamparado, em contradição consigo mesmo. O final é
previsível: «Agradeçamos portanto aos senhores nossos pais. Ao teu o suicídio,
ao meu a loucura» (p. 153), diz Pierre a Diane.
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