Há efemérides que não fazem sentido algum, o dia do pai é
uma delas. Isto porque o pai não é em si mesmo um valor absoluto. Em dias
destes, como no dia da mãe ou no dia dos namorados, entre outros dias com
objectivos meramente comerciais, penso nas pessoas abandonadas pelos pais,
naquelas que aguentaram pais violentos, nos pais que mataram as suas mulheres e
deixaram os filhos para contar a história. Penso também no Édipo Rei de Sófocles
e na leitura freudiana da tragédia, simplificada por Jim Morrison nos versos de
The End: «Father? / Yes, son? / I want to kill you. / Mother, I want to…» O que
sentirão os tristes solitários que nunca tiveram namorado ou namorada no dia dos namorados? O que sentirão os filhos sem pai? O que lhes passará pela
cabeça? A maioria das pessoas simplesmente passa por cima disto como passa por
cima de tudo o que fira e magoe, mas a realidade é esta: ser pai não é, em si
mesmo, um valor absoluto. É um valor relativo que nenhuma fotografia de
momentos afectuosos consagra. Penso em René Crevel (n. 1900 – m. 1935), que aos
catorze anos de idade foi obrigado pela mãe a ver o pai enforcado. Sei de
pessoas cujos pais se mataram ou se deixaram morrer lentamente, vítimas de
doenças terminais como, por exemplo, depressões profundas. Sim, depressões
profundas. Deixem-me por um dia chamar-lhes doenças terminais, mortes lentas e
dolorosas, doenças prolongadas com seus mártires torturados. O próprio Crevel
foi uma dessas pessoas, acabou por se suicidar, a 18 de Junho de 1935, «fechando
a porta, fechando a janela e abrindo a torneira do gás. Ao forro do casaco
prendeu o bilhete destinado a marca derradeira do seu negro humor: Nojo,
pede-se o favor de incinerar» (Aníbal Fernandes). A imagem pode ser violenta,
mas a vida não o é menos. Não o deixei de fora dos meus suicidas por
esquecimento, mas porque ele quis fica só. E ficando só torna-se uma das
presenças mais fortes. Cito-o hoje, no dia do pai:
Por causa de um
suicídio a que me foi dado assistir, com um autor-actor que então era o ser
mais querido e que mais me acudia ao coração, desse suicídio que mais fez — à minha formação e à minha deformação — do
que qualquer outra tentativa posterior de amor ou ódio, senti desde o fim da
minha infância que o homem facilitador da sua própria morte é o instrumento de
uma força maiúscula (chamai-lhe Deus ou Natureza), que ao pôr-nos no meio das
mediocridades terrestres arrasta na sua trajectória, e para mais longe do que
este globo de expectativa, os únicos corajosos que nele existem.
Suicidamo-nos por
amor, por medo, por causa da sífilis, ao que se diz. Não é verdade. Toda a
gente ama ou julga amar, toda a gente tem medo, toda a gente é mais ou menos
sifilítica.
Mas por que não
posso, na verdade, ver no suicídio um meio de selecção?
Só se suicidam os
que não têm a quase universal cobardia de lutar contra esta já referida e tão
intensa sensação de alma que até nova ordem seremos obrigados a tomar por uma
sensação de verdade.
Não é verosímil que
nenhum amor, nenhum ódio sejam justos nem definitivos. No entanto, apesar de eu
ter tido uma educação moral e religiosa despótica, a estima que muito contra
vontade minha sou forçado a manter por qualquer pessoa que não tenha sentido medo nem limitado o seu
impulso, o impulso mortal, leva-me todos os dias a invejar ainda mais os que
sentiram uma angústia forte, ao ponto de não poderem continuar a aceitar os
divertimentos episódicos.
Os êxitos humanos são
moeda falsa, pura fancaria. Se a felicidade terrestre nos permite ter paciência,
fá-lo negativamente, à maneira de um soporífero. A vida que aceito é o mais
terrível argumento contra mim próprio. A morte que várias vezes me tentou
ultrapassava em beleza esse medo de morrer, na sua essência uma gíria, e ao
qual poderia também chamar tímido hábito.
Eu quis abrir a
porta e não me atrevi a fazê-lo. Não tive razão, sinto-o, acredito-o, quero
senti-lo, acreditá-lo; mas porque não encontrei nenhuma solução na vida, apesar
do meu esforço a procurá-la, teria força para fazer algumas tentativas se não
vislumbrasse no gesto definitivo, último, a solução?
Aliás, a obsessão
do suicídio permanecerá em mim, sem dúvida, como a melhor e a pior garantia
contra o suicídio.
René Crevel, in O Meu Corpo e Eu, tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes, Sistema Solar, Outubro de 2014, pp. 79-80.
4 comentários:
E assim matas todos os pais.
eu penso em todos esses exemplos. mas penso também no meu pai e na falta que ele um dia me fará, ou que eu lhe farei (pois, como dizes, tudo isto é relativo).
Claro que o amor dos pais é relativo. Tudo é, em certa medida relativo ao homem que vive os sentimentos ou as emoções na sua condição específica. E é certo haver pais assim e assado. Mas, dada a relatividade que afirma e até existe, então, se ela manda, nada vale a pena. Nada de bom. Mas acontece que existem pais assim assim e filhos assim assim em grande número. Que se acompanham uns aos outros cumprindo papeis não para cumpri-los mas por bem querer e estima. Haver um dia deles - ainda que não seja demasiado ligada a ele - não me choca.
Muito obrigada, Henrique, pelo texto.
Também não gostos dos dias "especiais" para isto ou para aqui, seja lá o que for. E também penso no meu pai, (tão doente) e na falta que ele me fará... ou como diz o Manuel Domingos, que eu lhe farei.
Abraço
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