quarta-feira, 26 de maio de 2021

BODY AND SOUL (1930)


 

Estranhos delírios nos assomam como as marés, num vaivém que há-de ter suas causas e razões. Na companhia de um ex-amigo, calcorreava campos em busca de cerejas. Eis algo que não me recordo de alguma vez ter feito, apanhar cerejas. Ia também connosco o meu falecido cão, o Basquiat. À solta, como tão fácil era andar com ele. Mais obediente do que a Nala, não causava cuidados desprendê-lo da trela. Deparei com algumas árvores de fruto pelo caminho, nenhuma dava cerejas. A dado momento, reparo num arbusto onde reluziam uma espécie de pimentos muito pequenos. Apanhei alguns que fui atirando para o interior de um saco de plástico. Quando me levanto e volto, abria-se atrás de mim um imenso vale com uma cerejeira carregada bem no centro. Nós estávamos no cume de um monte recortado por socalcos e patamares, como aqueles que por vezes se vêem cobertos de vinhas, mas em vez de vinhas tinha construções de cimento, levadas, escadarias, habitações abandonadas. Tínhamos de descer, encontrar o melhor caminho para chegar à cerejeira. As construções em cimento eram labirínticas e acidentadas. Vi o Basquiat afastar-se rapidamente. Preocupado com ele, separei-me do meu ex-amigo e desci no encalço do cão. Gritava sem obter resposta. O cão prosseguia indiferente, agora obedecendo a uma mulher de aspecto rural, cabeça coberta por um lenço, saia cinzenta, avental à cintura. O cão desapareceu atrás da mulher. Aflito, eu gritava em vão, descia apressadamente, metendo-me por caminhos desconhecidos até dar por mim preso num beco sem saída. Não tinha como libertar-me, estava completamente só e entregue à sorte. Quando acordei, com a Nala aos pés da cama, a primeira coisa que fiz foi procurar no telemóvel fotografias da Sarah Vaughan. A mulher do sonho era igual, mas branca. E vestia-se como as minhas avós. E não cantava. Mas era igual.

 

Nota adicional e irrelevante: Body and Soul foi escrita por Edward Heyman, Robert Sour e Frank Eyton, com música de Johnny Green, para a actriz britânica Gertrude Lawrence. Chegou a estar banida da rádio por alegadas referências sexuais, mas tornou-se um standard interpretado e gravado por inúmeros artistas.

2 comentários:

sonia ferreira da silva disse...

https://www.youtube.com/watch?v=vUCo1kS7SrA

Também tenho pesadelos como o seu. Espero que consiga colher as cerejas a que tem direito! Abraços, Sônia

hmbf disse...

Obrigado.