terça-feira, 25 de maio de 2021

FICAR NO PATAMAR

 


À excepção de O Patamar, os cinco caprichos teatrais de José Gomes Ferreira pareceram-me agora datados e menos interessantes do que quando os li pela primeira vez. Talvez à época ainda me entusiasmasse certo discurso entretanto ultrapassado pelas circunstâncias. São peças políticas sobre diferentes modos de receber a notícia de uma revolução, ecoam já distanciamento, porventura desconfiança quanto ao rumo tomado, e algum desencanto. Falar do 25 de Abril de 1974 como se fala em Manhã Morta ou Os Novos e os Velhos exala o mofo das meras curiosidades arqueológicas. Nem tudo é antiquado. Os cenários sugeridos nas didascálias têm em comum as escadas, aspecto que não é de todo desinteressante. A escada permite uma ocupação do espaço que não é meramente decorativa, apela a movimentos ascensionais e descensionais que podem favorecer a acção. Na peça O Patamar os lances de escadas são acompanhados por iluminações que inspiram sentimentos diferentes, conforme o vermelho ou azul insinuados. Continuo a encontrar piada no velhinho que bate à porta do Sr. X, testemunha do pregador da salsicha sagrada, missionário com o sonho de converter alguém à causa do Divino Salsicheiro. Ainda tem um sonho, o velhinho. Diríamos que, fosse vivo, venceria na vida. Com o passar dos anos Portugal foi completamente ensalsichado. Chamam-lhe americanização ou hegemonia capitalista. O que quer que seja que lhe chamem é cada vez mais um facto, reforçado pelo ilusionismo hipnótico de uma rede que cativa porque aparvalha, que captura porque infantiliza, que seduz porque facilita, que aprisiona porque desprotege. Isto é, uma rede que esgota o discernimento crítico que podia ajudar cada um de nós a tomar posições conscientes. Creio que tendem a rarear neste contexto de entretenimento industrial massivo que, como outros previram há muito, faz de cada um de nós um artista de variedades. O segredo do sucesso está na técnica do esvaziamento, a qual pressupõe um vazamento (esgotar lembra esgoto, é isso a rede). Quanto mais vazio, mais deslumbrante. Quanto mais fugaz, efémero, descartável, ligeiro, mais estético. Nunca o lixo foi tão apreciado, nunca a porcaria foi tão valiosa, nunca os dejectos foram tão aglutinadores. Nunca as salsichas tiveram tanto sucesso. O velhinho da peça acaba por se acomodar num patamar. Gosto da solução: «Prefiro ficar no patamar. Bem vê: casa tenho eu prometida no céu e na terra. Já lhe disse que, quando deitaram abaixo o bairro de lata onde vivia, me prometeram um palacete para daqui a cinquenta ou cem anos com colunas e tudo? Prefiro o patamar. Estou convencido de que até, quando morrer, nunca passarei do patamar. Ui! O medo que eu tenho de Deus. Atrevia-me lá a pisar o céu. Tropeçava logo na primeira nuvem do caminho.» É um exemplo a ter em conta, mesmo que ao subir ele vá ponderando criar uma nova religião. «Céu nosso que estás na Terra e só falta aos homens coragem e audácia para o agarrarem e não o largarem mais», responde-lhe o irónico Sr. X.

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