segunda-feira, 31 de maio de 2021

NOTA DE RODAPÉ

 


A minha recordação mais remota está banhada em vermelho. Saio de uma porta nos braços de uma rapariga, o chão é vermelho à minha frente e à esquerda há uma escada que desce igualmente vermelha. À nossa frente, à mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente que avança amigavelmente na minha direcção. Aproxima-se muito, pára, e diz-me: "Mostra a língua!" Eu ponho a língua de fora, ele procura qualquer coisa no bolso, tira lá de dentro uma navalha e, com a lâmina quase a tocar-me a língua diz: "Agora vamos cortar-lhe a língua." Não me atrevo a pôr a língua para dentro, e a faca aproxima-se cada vez mais até ma roçar. No último momento, o homem afasta a navalha e diz: "Hoje ainda não, amanhã." Fecha a navalha e guarda-a no bolso. Todas as manhãs quando transpomos a porta e saímos para o corredor vermelho, abre-se a outra porta e aparece o homem sorridente. Sei o que ele vai dizer e espero que me ordene que lhe mostre a língua. Sei que ma vai cortar e tenho cada vez mais medo. Assim começa o dia, e a história repete-se muitas vezes.

Elias Canetti, citado por Byung- Chul Han, in Rostos da Morte - investigações filosóficas sobre a morte, trad. Miguel Serras Pereira, Relógio D'Água, Abril de 2021, p. 212.

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