domingo, 27 de junho de 2021

A GERAÇÃO INVISÍVEL

 

   Foi no decorrer da concepção de Naked Lunch (1959) que William S. Burroughs (1914-1997) começou a interessar-se pela técnica do cut-up desenvolvida por Brion Gysin (1916-1986). Performer, artista, poeta, Gysin era um entusiasta da experimentação caligráfica e da poesia sonora, criando, com o engenheiro Ian Sommerville (1940-1976), a conhecida Dreamachine. Consistia esta num dispositivo reprodutor de estímulos visuais. O propósito de tais experiências seria testar os limites da consciência através de uma exploração exaustiva das nossas competências perceptivas. Burroughs centrou grande parte do seu trabalho ensaístico na defesa e no aprofundamento da noção de cut-up, como terá disso conhecimento quem tiver lido, por exemplo, A Revolução Electrónica (Vega, trad. José Augusto Mourão, 1994).
   Embora Naked Lunch tivesse germinado numa fase anterior a este processo de maturação reflexiva, ele acabou por se transformar num embrião da obra ficcional subsequente plasmada em trabalhos como The Soft Machine (1961) ou Nova Express (1964). Entre os instrumentos fulcrais para a prática da técnica do cut-up estavam os gravadores de cassetes produzidos por Ian Sommerville, podendo hoje olhar-se para tais dispositivos como antecessores das novas tecnologias ao serviço da produção artística. O método consistia na possibilidade de combinações aleatórias de frases para geração de texto, um trabalho de colagem que punha em xeque o papel tradicional do escritor enquanto autor mas reforçava a sua função, digamos assim, enquanto encenador ou editor. No fundo, trata-se de mise-en-scène em contexto estritamente literário, o que de algum modo inaugurou o reinado da intertextualidade entretanto caído em desgraça pelo recurso exaustivo a um pastiche sem interesse e a paráfrases difíceis de distinguir do mero plágio.
   O cut-up funda-se numa complexidade que tem por princípio a consciencialização dos poderes de influência e de sugestão exercidos pela aleatoriedade, tal como para os surrealistas a escrita automática tornava acessíveis os dados do inconsciente. A noção de que o contexto determina a percepção é aqui assumida de um modo muito frontal. Logo no início deste A Geração Invisível (trad. Jorge Pereirinha Pires, Barco Bêbado, Abril de 2021), o Autor defende que «quem tiver um gravador de fita a controlar a banda sonora pode influenciar e criar uma banda visual» (p. 5). E assim é de facto. Sabem-no os técnicos de comunicação e os agentes ao serviço do discurso publicitário e político, sabem-no os propagandistas e os vendedores de banha da cobra espalhados pelos templos onde deus ainda boceja.
   Estamos num terreno onde a psicologia se cruza com a produção artística, mas estamos também num campo onde a produção artística foi sendo apropriada como sustento de todo o tipo de falcatruas. Vejam-se as encenações dos comícios que hoje têm a configuração de autênticos espectáculos, retire-se-lhes o som e fique-se apenas com a imagem ou isolem-se-lhes as imagens e fique-se apenas com os sons. Os efeitos são devastadores. Para William S. Burroughs este foi um campo profícuo de testagem. Se podemos sublinhar um dado comum em toda a sua obra por nós conhecida é a experimentação continuada dos limites da psique visando a transposição das fronteiras que impõem paradigmas e sustentam todo o tipo de manipulações.
   Eternamente apaixonado pelo oculto, pelas alterações de consciência provocadas pelo consumo de drogas, pelo xamanismo, pelas visões místicas e pelas metamorfoses exaltadas através de diversas técnicas apontando para transposições da realidade e para um além da normalidade convencional, o interesse do autor de Naked Lunch é, antes de mais, libertador: «tais exercícios trazem-vos uma libertação das antigas cadeias de associação» (p. 13). Os desafios a que se propunha em busca de sentidos surpreendentes tinham na sua origem um projecto que, no limite, é também ele sociológico e político: «desfazei o programa dessas velhas fitas» (p. 15), ou seja, libertai-vos dos padrões e dos uniformes, ide ao encontro da vossa individualidade.
   Por outro lado, encontramos no seu trabalho uma lúcida antecipação do modo como os poderes (político, económico, religioso, militar…) assimilam estas técnicas para as subverter num contexto massivo. Interrogamo-nos hoje sobre que outra coisa farão os programadores das novas tecnologias da sociabilidade e da comunicação, com os seus critérios particulares de corte e costura e os seus algoritmos deterministas pervertendo a aleatoriedade individual em prol da manipulação colectiva: «se quereis espalhar a histeria gravai e reproduzi as reacções mais estúpidas e mais histéricas» (p. 15). Na síntese metodológica que ensaia, A Geração Invisível é, em sentido restrito, um contributo para a compreensão de uma técnica de produção artística, mas, em sentido lato, ajuda-nos a pensar o que de invisível gera os factos por nós percepcionados. Das armas de destruição massiva que levaram à invasão do Iraque ao império das fake news que põe e depõe governos, exemplos não faltam que comprovem como «sonoras buzinadelas de uma buzina ausente poderão ocasionar um acidente» (p. 6).  

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