Há meses que não entrava numa pastelaria para tomar o
pequeno-almoço. Quebrei hoje o jejum, depois de deixar a Matilde no
Conservatório em Óbidos. Estacionei o carro próximo da Raul Proença e dirigi-me
ao balcão da minha pastelaria preferida nas redondezas. Não direi qual para
evitar publicidade não paga, actividade que muito prezo mas já me cansa. Pedi
um café cheio e um pampilho. A moça de serviço volteou os olhos, como quem se
coloca alerta perante ameaças terceiras, baixou a máscara à altura do queixo e
sussurrou qualquer coisa que não percebi. «Desculpe, não entendi», disse-lhe.
Ela tornou a voltear os olhos, inclinou-se ligeiramente na minha direcção, e
movimentou lentamente os lábios como se eu fosse especialista em leitura
labial. Não sou. Num gesto espontâneo, baixei a máscara para ver e ouvir
melhor. Desculpei-me mais uma vez. «Devo estar a ficar surdo», comentei. Ela
sorriu, muito simpaticamente, e respondeu-me soletrando um «Não estão frescos.»
«Ah», exclamei com contentamento pela resolução do enigma, «os pampilhos não
estão frescos». A patroa, num lugar recuado atrás do balcão, encarou
subitamente comigo e com a empregada, acenou com o que me pareceu ser um esgar
de desaprovação. Não augurei nada de bom para a empregada. Lamento. Passados
alguns segundos de tensão entre os segmentos deste triângulo desencontrado, a
moça concluiu justificando os cuidados: «Só estava a pensar na sua barriga.»
Senti-me inesperadamente incomodado, não tanto pela completa ausência de
perspicácia que demonstrei ou pelo olhar reprovador da patroa, mas pelos
pensamentos da pobre rapariga. Não consigo imaginar o que possa ser de tormento
para alguém pensar na minha barriga. Eu, há anos que me libertei de cogitações tão deprimentes. Daí que tivesse solicitado um pampilho. Não
havendo deles frescos, agradeci a deferência e regressei a casa com o
pequeno-almoço por tomar. Encontro-me agora mesmo a beber um chá de menta e a
preparar-me para lançar mãos ao trabalho. A barriga sente-se bem, mercê do anjo
da guarda das pastelarias.
domingo, 13 de junho de 2021
ANJO DA GUARDA
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1 comentário:
pois, são as dores do envelhecimento, essas preocupações alheias com o nosso bem-estar
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