sábado, 5 de junho de 2021

ROSTOS DA MORTE

 

Tendemos a encarar a morte ou como o fim da existência material ou como o princípio de uma vida imaterial, a qual só por postulado admitimos. Dessa não temos experiência, tal como não temos experiência da nossa morte, pelo menos da morte definitiva, a que interrompe a contagem do tempo, a que suspende a passagem das horas, a que delimita a presença neste mundo empiricamente assimilado. A experiência que temos da morte vem da observação da morte dos outros, vem do sentimento de perda instaurado pelo desaparecimento do outro. Experiências de quase morte não são experiências de morte, o advérbio demarca a diferença entre facto e aparência. Uma morte aparente não é uma morte. O último ano e meio universalizou, porém, essa relação com a morte que imaginamos ser de há muito aquela que têm os povos ditos menos favorecidos, as vítimas dos conflitos insanáveis e das eternas querelas sanguinárias. Passámos todos, o mundo inteiro, a estar em guerra, ainda que não escutemos o rebentar das bombas nem cheiremos napalm pela manhã, ainda que, de um modo ou de outro, e onde tal é possível, permaneçamos protegidos pela paz silenciosa dos abrigos a que damos o nome de lares. Fechados em casa é como se o mundo deixasse de existir, o tal mundo dos atentados e das ameaças, o de todos os perigos imagináveis, embora dentro de casa também se mate. Damos graças, no entanto, por não vivermos na Síria ou na Serra Leoa. Aí os níveis de intimação são infinitamente superiores àqueles a que estamos habituados em Portugal ou no Canadá. Mas o último ano e meio foi de invasão. A morte invadiu-nos. Desde que a pandemia assumiu protagonismo mediático, o nosso dia-a-dia noticiário passou a ser pautado pela contabilidade dos mortos. Os pivots de telejornal falam da morte como quem anuncia os resultados de um campeonato de futebol. Que efeitos serão produzidos por este novo paradigma é ainda cedo para prever, os mortos continuam a ser contados. Relatos de profissionais de saúde em desespero, imagens angustiantes de cremações e enterros em massa, sem direito a luto nem a rituais fúnebres, perdurarão nas nossas consciências durante largos anos. A morte é, pois, um tema premente. Em Rostos da Morte (Relógio D’Água, Abril de 2021), o filósofo Byung-Chul Han procura compreendê-la para lá da conjuntura social, cultural, política, histórica. Fala em «alguns tipos de morte». As investigações filosóficas que nos propõe só de um modo indirecto se ligam à actualidade, resultam de um trabalho especulativo em torno das obras de Adorno, Heidegger, Levinas, Derrida, em busca de uma ontologia da morte que permita entendê-la para lá da experiência material do cadáver.
   Com Heidegger tomámos consciência não só do ser para a morte que é estar aqui como também dessa perscrutabilidade a que a existência do cadáver está sujeita. O cadáver não é o fim do eu, poderá ser dissecado, estudado, reaproveitado. O fim, o termo, aquilo que acaba experiencia-se diariamente e de modos tão frugais que nem lhes atribuímos relevância. O fim de uma leitura, o fim de uma viagem, o fim de uma refeição, são formas de experienciar uma finitude que acabamos por atribuir a tudo quanto vive. Viver é estar à morte, mas, paradoxalmente, «é a morte que mantém viva a vida». Isso mesmo revela Adorno ao falar da vida enquanto quintessência da morte, a possibilidade de um ser vivo se conservar ao prodigalizar-se. Platão, no Fédon, faz da morte objecto de aprendizagem para chegar à imortalidade da alma. Viver é o contrário de estar morto, viver é um ir morrendo, na morte dá-se a vida autêntica, a eterna, ideal. O que nos leva a recalcar a morte será a dor que ela provoca, a dor de nos sentirmos efémeros, essa mesma dor que relativiza a heroicidade e subjectiviza a coragem. Não temer a morte, no limite, redunda numa ausência de temor à vida, uma ausência de temor que estará na origem do ateísmo. O ateu que sofre com a morte não sofre por se sentir finito, a eternidade é-lhe irrelevante, mas antes por se descobrir impotente.
   No ensaio Sobre a Ética da Morte, Byung-Chul Han recorda que «não há nada para dizer ao moribundo»: «Toda a palavra de amor perante o morrer do outro o distrairá da sua solidão fundamental, a única em que seria possível a sua morte própria». Talvez o amor nos distraia da morte, talvez a morte funde uma necessidade que leva a isso a que chamamos amor. Amamos o outro para nos distrairmos da morte, o amor funda a geração, a criação e a recriação, o amor oferece-nos a possibilidade de uma continuidade e a ilusão de que não estamos irremediavelmente sós, esse amor que fundindo confunde. Levinas dirá que se morre na solidão. A experiência da morte é, pois, a experiência de uma aporia. A morte é e não é ao mesmo tempo, é um alguém ninguém. 
   A propósito de Derrida, o filósofo sul-coreano questiona: «O “mortal” não será realmente para Derrida mais do que o animal nervoso, inquieto, perseguido? Quando será possível serenar-se?» A ideia de serenidade diante da morte é uma herança antiga que o pensamento instaurou mas os factos desmentem. Neste livro não se reflectem o suicídio e a eutanásia enquanto desejo de morrer, o desejo da morte do outro que alimenta o guerreiro também não se discute. Os Rostos da Morte são pacíficos pensados com tal distanciamento, tornam-se mais agrestes no contexto de situações limite em que somos levados a aceitar a morte enquanto alívio (a nossa e a do outro que nos agride, condiciona, oprime, humilha). São problemas alheios a esta obra, mas que nos levam a pensar na morte como parte integrante de uma vida inquieta na sua essência. A serenidade acaba por ser uma idealização que busca conforto para uma realidade insuportável: a ruína, a destruição, o assassínio, a guerra, o suicídio, o crime, a eutanásia, o desejo de morte, repousam no coração e na vontade dos homens, não só como meios para um fim mas também enquanto fins em si mesmo. A besta não mata só para satisfazer a sua voracidade, mas também por divertimento.
   O divertimento da morte, mais generalizado do que se julga, até em espectáculos legitimados pelo poder (touros de morte, por exemplo, caçadas, safaris, todo o tipo de barbaridades que em contexto de guerra se chamam troféus), assim como a convivência indiferente com a tragédia fatal (como aquela a que assistimos no Mediterrâneo), levam-nos a ponderar uma relação com a morte fora do subterfúgio moral da consciência humana esclarecida quanto à vida. Essas mortes a que somos indiferentes não indagam a nossa própria morte, antes reforçam a convicção de que o ser da morte não se explica senão a partir de uma compreensão do ser da vida. E no seu núcleo mais activo iremos encontrar inevitavelmente uma crueldade e uma violência que não questionam, limitam-se a actuar em função de necessidades cada vez mais restringidas ao plano da conformação. É a vida, é isto a vida, já não sofre, é a lei da vida, ouvimos dizer num funeral. Palavras que não reconfortam senão quem as profere, pois nelas está inerente a ideia de uma impotência que só na crueldade vislumbra libertação. Na realidade, a morte não é a lei da vida. A lei da vida seria viver, não fosse matar.

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