Tendemos
a encarar a morte ou como o fim da existência material ou como o princípio de
uma vida imaterial, a qual só por postulado admitimos. Dessa não temos experiência,
tal como não temos experiência da nossa morte, pelo menos da morte definitiva,
a que interrompe a contagem do tempo, a que suspende a passagem das horas, a
que delimita a presença neste mundo empiricamente assimilado. A
experiência que temos da morte vem da observação da morte dos outros, vem do
sentimento de perda instaurado pelo desaparecimento do outro. Experiências de
quase morte não são experiências de morte, o advérbio demarca a diferença entre
facto e aparência. Uma morte aparente não é uma morte. O último ano e meio
universalizou, porém, essa relação com a morte que imaginamos ser de há muito
aquela que têm os povos ditos menos favorecidos, as vítimas dos conflitos insanáveis
e das eternas querelas sanguinárias. Passámos todos, o mundo inteiro, a estar em guerra, ainda que não
escutemos o rebentar das bombas nem cheiremos napalm pela manhã, ainda que, de
um modo ou de outro, e onde tal é possível, permaneçamos protegidos pela paz
silenciosa dos abrigos a que damos o nome de lares. Fechados em casa é como se
o mundo deixasse de existir, o tal mundo dos atentados e das ameaças, o de
todos os perigos imagináveis, embora dentro de casa também se mate. Damos graças, no entanto, por não vivermos na Síria ou na
Serra Leoa. Aí os níveis de intimação são infinitamente superiores àqueles a que estamos
habituados em Portugal ou no Canadá. Mas o último ano e meio foi de invasão. A
morte invadiu-nos. Desde que a pandemia assumiu protagonismo mediático, o
nosso dia-a-dia noticiário passou a ser pautado pela contabilidade dos mortos. Os
pivots de telejornal falam da morte
como quem anuncia os resultados de um campeonato de futebol. Que efeitos serão
produzidos por este novo paradigma é ainda cedo para prever, os mortos continuam
a ser contados. Relatos de profissionais de saúde em desespero, imagens
angustiantes de cremações e enterros em massa, sem direito a luto nem a rituais
fúnebres, perdurarão nas nossas consciências durante largos anos. A morte é,
pois, um tema premente. Em Rostos da
Morte (Relógio D’Água, Abril de 2021), o filósofo Byung-Chul Han procura
compreendê-la para lá da conjuntura social, cultural, política, histórica. Fala
em «alguns tipos de morte». As investigações filosóficas que nos propõe só de
um modo indirecto se ligam à actualidade, resultam de um trabalho especulativo
em torno das obras de Adorno, Heidegger, Levinas, Derrida, em busca de uma
ontologia da morte que permita entendê-la para lá da experiência material do
cadáver.
Com Heidegger tomámos consciência não só do ser para a morte que é
estar aqui como também dessa perscrutabilidade a que a existência do cadáver
está sujeita. O cadáver não é o fim do eu, poderá ser dissecado,
estudado, reaproveitado. O fim, o termo, aquilo que acaba experiencia-se
diariamente e de modos tão frugais que nem lhes atribuímos relevância. O fim de
uma leitura, o fim de uma viagem, o fim de uma refeição, são formas de
experienciar uma finitude que acabamos por atribuir a tudo quanto vive. Viver é
estar à morte, mas, paradoxalmente, «é a morte que mantém viva a vida». Isso
mesmo revela Adorno ao falar da vida enquanto quintessência da morte, a
possibilidade de um ser vivo se conservar ao prodigalizar-se. Platão, no Fédon, faz da morte objecto de
aprendizagem para chegar à imortalidade da alma. Viver é o contrário de estar
morto, viver é um ir morrendo, na morte dá-se a vida autêntica, a eterna, ideal.
O que nos leva a recalcar a morte será a dor que ela provoca, a dor de nos
sentirmos efémeros, essa mesma dor que relativiza a heroicidade e subjectiviza
a coragem. Não temer a morte, no limite, redunda numa ausência de temor à vida,
uma ausência de temor que estará na origem do ateísmo. O ateu que sofre com a
morte não sofre por se sentir finito, a eternidade é-lhe irrelevante, mas antes
por se descobrir impotente.
No ensaio Sobre
a Ética da Morte, Byung-Chul Han recorda que «não há nada para dizer ao
moribundo»: «Toda a palavra de amor perante o morrer do outro o distrairá da
sua solidão fundamental, a única em que seria possível a sua morte própria».
Talvez o amor nos distraia da morte, talvez a morte funde uma necessidade que
leva a isso a que chamamos amor. Amamos o outro para nos distrairmos da morte,
o amor funda a geração, a criação e a recriação, o amor oferece-nos a
possibilidade de uma continuidade e a ilusão de que não estamos
irremediavelmente sós, esse amor que fundindo confunde. Levinas dirá que se
morre na solidão. A experiência da morte é, pois, a experiência de uma aporia.
A morte é e não é ao mesmo tempo, é um alguém ninguém.
A propósito de Derrida,
o filósofo sul-coreano questiona: «O “mortal” não será realmente para Derrida
mais do que o animal nervoso, inquieto, perseguido? Quando será possível
serenar-se?» A ideia de serenidade diante da morte é uma herança antiga que o pensamento
instaurou mas os factos desmentem. Neste livro não se reflectem o suicídio e a
eutanásia enquanto desejo de morrer, o desejo da morte do outro que alimenta o guerreiro
também não se discute. Os Rostos da Morte
são pacíficos pensados com tal distanciamento, tornam-se mais agrestes no
contexto de situações limite em que somos levados a aceitar a morte enquanto alívio (a nossa e a do outro que nos agride, condiciona, oprime, humilha). São problemas alheios a esta obra, mas que nos levam a pensar na morte como
parte integrante de uma vida inquieta na sua essência. A serenidade acaba por
ser uma idealização que busca conforto para uma realidade insuportável: a
ruína, a destruição, o assassínio, a guerra, o suicídio, o crime, a eutanásia,
o desejo de morte, repousam no coração e na vontade dos homens, não só como
meios para um fim mas também enquanto fins em si mesmo. A besta não mata só para
satisfazer a sua voracidade, mas também por divertimento.
O divertimento da
morte, mais generalizado do que se julga, até em espectáculos legitimados pelo
poder (touros de morte, por exemplo, caçadas, safaris, todo o tipo de
barbaridades que em contexto de guerra se chamam troféus), assim como a convivência
indiferente com a tragédia fatal (como aquela a que assistimos no Mediterrâneo),
levam-nos a ponderar uma relação com a morte fora do subterfúgio moral da
consciência humana esclarecida quanto à vida. Essas mortes a que somos
indiferentes não indagam a nossa própria morte, antes reforçam a convicção de que
o ser da morte não se explica senão a partir de uma compreensão do ser da vida. E no seu núcleo mais activo iremos encontrar inevitavelmente uma
crueldade e uma violência que não questionam, limitam-se a actuar em função de necessidades cada
vez mais restringidas ao plano da conformação. É a vida, é isto a vida, já não
sofre, é a lei da vida, ouvimos dizer num funeral. Palavras que não reconfortam
senão quem as profere, pois nelas está inerente a ideia de uma impotência que
só na crueldade vislumbra libertação. Na realidade, a morte não é a lei da
vida. A lei da vida seria viver, não fosse matar.
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