sexta-feira, 23 de julho de 2021

UM POEMA DE ANTÓNIO FERRA

 


CANTIGA DE AMIGO

Fixava os olhos nos meus
não digo que me queimassem
retinham-me a luz numa invasão silenciosa

Heitor puxava-me o vestido
ria-se
ria-se com gargalhadas insolentes
e logo me prendia as mãos
obrigava-me a sentar na mesa de plástico
para me espetar os olhos

coleccionava objectos para transaccioná-los a curto prazo
bibelots, braceletes, camafeus, brincos,
pouco valor tinham além de uma vaga estima
uma recordação de um passeio nocturno pelo artesanato sazonal

precisava sempre de dinheiro
´para voar com o olhar parado
atordoava-se com qualquer produto
da erva mais barata ao pó mais caro
e em carência máxima
calmantes
analgésicos
cogumelos venenosos

todo o seu olhar tinha o peso
de uma pedra de moinho
a impedir-me de fazer tudo bem feito
fritar carapaus
elaborar um requerimento,
dançar sapateado
memorizar uma fala

a alienação da luz vinha
quando Heitor me olhava intensamente
ou me roubava anéis de memórias
isso doía
ficava com as pernas bambas
desfazia-se o laço negro à volta da garganta

pouco falava
mas às vezes dizia-me
a tremer e a fungar
de olhos ausentes
que a beleza nascia das minhas mãos pequenas

Heitor não se mexia
agredia-me com a imobilidade
acabei por conviver com essa paragem no tempo
enquanto o seu olhar durava
ia à janela da sala ver se a minha mãe chegava
e contemplava uma tília solitária
nem um cão para minimizar a estagnação
apenas o silêncio das folhas
a transparência do pano que me cobria o corpo

Heitor rondava a casa,
fixava-me com aquele seu olhar
até parar os olhos
nas minhas mãos pequenas
ou na caixa das gargantilhas da minha mãe ausente
com o pretexto de absorver substâncias
em troca de pequenos roubos e alucinações

surpreendo-me quando me encontro
na execução correctíssima das tarefas
os lençóis esticados sem uma ruga
a perfeição caligráfica
a justa medida do sal

mas sabia muito bem que
a minha ausência afastava as pessoas
a vizinhança anónima
os vendedores de murmúrios
os primos e as primas dos meus primos

amava-o no olhar
despia-me muitas vezes para ele em cima da mesa de plástico
onde se misturavam a tisana e o tempo
e se adiava a concretização do desejo

só a água me escorria pelos seios
colava-me ao corpo a transparência à mercê de um olhar imóvel
na ausência que nasce das ausências.

António Ferra, in Estrada de Cinza, com imagens do autor, Eufeme, Abril de 2021, pp. 29-36.

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