O austríaco Karl Kraus foi um satirista celebrizado tanto
pelas peças de teatro como pelos aforismos, embora tenha mantido uma intensa
actividade jornalística. Também escreveu poemas e ensaios. Estudou Direito, sem
sucesso nem convicção, e tentou ser actor. Em vão. Também não prosseguiu os
estudos de literatura alemã e de filosofia. Preferiu dedicar-se ao humor,
satirizando a sociedade da sua época com especial desenvoltura. Renunciou ao
judaísmo no mesmo ano em que fundou o seu primeiro jornal, em 1899, plataforma
a partir da qual encetou diversas polémicas disparando sobre a hipocrisia do
moralismo, políticas económicas, corrupção, psicanálise, etc. Os seus aforismos
podem denotar, por vezes, uma mente misógina e solipsista, algo misantrópica,
mas nunca devemos perder de vista o tom eminentemente irónico dos seus
pensamentos. Tem uma obra vasta e heteróclita, tendo sido indicado para o Nobel
algumas vezes. Fez inúmeras palestras, tendo Elias Canetti sido um assíduo
frequentador das mesmas. Publicou em 1919 aquela que é considerada a sua
obra-prima, Os Últimos Dias da Humanidade,
fantasia apocalíptica que coloca em contracena um optimista e um pessimista. É
um texto que combina documentos factuais com fantasias apocalípticas, começado
a escrever em 1915 e composto por alguns dispersos publicados em
momentos diferentes. Antes, havia já coligido um primeiro de três volumes de
aforismos em 1909, sob o título genérico Ditos
e Contraditos (tradução de Lumir Nahodil, VS, 2018). São desse volume as
cogitações que se seguem:
Tratam a mulher como uma bebida refrigerante. Não querem
admitir que as mulheres tenham sede. (p. 15)
*
Já é mais que tempo de as crianças esclarecerem os pais
acerca dos segredos da sexualidade. (p. 43)
*
A solidão seria um estado ideal, se pudéssemos escolher
as pessoas que evitamos. (p. 61)
*
A terra está a mobilizar-se desde que os homens começaram
a ensaiar a conquista do ar. (p. 79)
*
Vi um poeta num relvado a correr atrás de uma borboleta.
Pousou a rede num banco, onde um rapaz estava a ler um livro. É uma
infelicidade que as coisas costumem passar-se ao contrário. (p. 83)
*
O uso de palavras pouco usuais é um vício literário. Só
se deve atrapalhar o público com dificuldades intelectuais. (p. 107)
*
O ajuntamento: e depois de se ter verificado o acidente “acorreram
ao local numerosos curiosos para inspeccionarem o local do acidente”. O
acidente, por seu lado, já se tinha tornado tão insensível às provocações da
curiosidade que se quedou por um desprezo taciturno. (pp. 123-124)
*
Tive uma visão horripilante: vi uma enciclopédia
aproximar-se de um sabe-tudo e abri-lo. (p. 133)
*
Eu e o meu público entendemo-nos muito bem: ele não ouve
o que eu digo, e eu não digo o que ele quer ouvir. (p. 142)
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