Terá sido em 1997, durante uma aula de Filosofia
Contemporânea, que o escritor Abel Neves proferiu as palavras a seguir
reproduzidas, fixadas posteriormente no volume Algures entre a resposta e a
interrogação — em volta do teatro (Edições Cotovia, Outubro de 2002):
Alturas houve em que os empresários diziam “ a filosofia da minha empresa” e ficámos todos a saber que as empresas tinham uma filosofia. Agora os generais falam do “teatro das operações” e ficamos à espera de vê-los criar e em nós a ilusão do real mais do que nos dar o sábio conhecimento de que nada existe que não seja assim mesmo, real.
Às vezes gosto de perder o norte na caminhada de um texto e ele perder-se como cabra no monte e deixá-lo refrescar-se na corrente dum ribeiro. É tão delicado falar da guerra, eu sei, falar com o cuidado que merece o rigor da morte e talvez por isso falem os generais tão à-vontade dos “cenários da guerra”. E toda a gente, sem dar por isso, fala dos cenários, de trás para a frene, cenários disto e daquilo, o cenário na ordem do dia, ou na ordem do mundo, ou ele ,mesmo, o mundo, como cenário.
Podíamos acrescentar as "cenas dantescas" e as
"situações kafkianas" ou, tão cada vez mais frequente, a exclamação
"porra, surreal!” O mundo anda estranho. Se calhar sempre andou, mas agora
parece mais. Estamos muito em cima do mundo e o mundo está muito em cima de nós.
Eu aprecio particularmente quando alguém acusa um terceiro de ser "um
poeta", assim mesmo, com o pronome a demarcar o território metonímico da
expressão, no sentido de idilista ou sonhador ou lunático (em sentido figurado,
claro, que as palavras são cada vez menos a sua raiz semântica e cada vez mais
a sua contingência prática). Também há aqueles que, referindo-se a certos
projectos, logo atiram com a sentença "isso é poesia", querendo dizer
que é impossível, porque talvez a poesia se tenha tornado impossível ou, pelo
menos, improvável. Ultimamente é tudo conceito e narrativa. Qualquer tasco tem
de ter um conceito para servir cafés e águas com gás e os argumentos utilizados na apresentação do conceito redundam em narrativas. Talvez isto
esteja certo. Falamos por metáforas ou lá o que é. E certas
expressões funcionam como que metáforas de factos e dados que pronunciados
objectivamente perdem a graça. Estamos carentes de graça, por isso dizemos
aflorar como se estivéssemos a tratar de um jardim e desarvoramos como quem
descortiça. Isto são comparações. Felizes ou infelizes fazem parte do nosso dia-a-dia
com as palavras. O que definitivamente perdeu sentido foi a expressão
"vida de cão". Há deles com uma vidinha tão invejável. É ainda Abel
Neves quem diz: «Não importa que as pequenas coisas sejam pensadas, trabalhadas
e apresentadas de modo complexo. O que importa é que as grandes coisas o sejam
de um modo simples.» Karl Kraus também disse algo semelhante num dos seus
famosos aforismos: «O uso de palavras pouco usuais é um vício literário. Só se
deve atrapalhar o público com dificuldades intelectuais.» Eu julgo que andamos
todos a dizer coisas sabendo que o silêncio seria mais aconselhável.
Ainda assim, dizemos e escrevemos o que é suposto pensarmos. Ou não. Às vezes as palavras surgem automaticamente, depois alindam-se ou desconstroem-se. Talvez devêssemos dizer derridam-se. Há quem invente
palavras, as que tem não chegam, há quem precise de palavras novas para dizer
coisas velhas. Nada de novo há a dizer, está tudo mais ou menos na mesma. O
essencial foi dito e escrito. A gente finge que não e então cita este e aquele
e aqueloutro, acumulamos frases que disparamos como balas na direcção dos
ouvintes. Os ouvintes são as presas. O leitor é a presa do escritor. O escritor
é um caçador. Mas deixa-me estar calado, já falei mais do que devia. A caça agora está tão mal vista. É a
caça e as touradas.
Sem comentários:
Enviar um comentário