segunda-feira, 30 de agosto de 2021

CONCEITO & NARRATIVA

 

Terá sido em 1997, durante uma aula de Filosofia Contemporânea, que o escritor Abel Neves proferiu as palavras a seguir reproduzidas, fixadas posteriormente no volume Algures entre a resposta e a interrogação — em volta do teatro (Edições Cotovia, Outubro de 2002):

 

A filosofia das empresas. A ilusão do real.
Alturas houve em que os empresários diziam “ a filosofia da minha empresa” e ficámos todos a saber que as empresas tinham uma filosofia. Agora os generais falam do “teatro das operações” e ficamos à espera de vê-los criar e em nós a ilusão do real mais do que nos dar o sábio conhecimento de que nada existe que não seja assim mesmo, real.

 

Perder o norte.
Por tudo e por nada, o cenário.
Às vezes gosto de perder o norte na caminhada de um texto e ele perder-se como cabra no monte e deixá-lo refrescar-se na corrente dum ribeiro. É tão delicado falar da guerra, eu sei, falar com o cuidado que merece o rigor da morte e talvez por isso falem os generais tão à-vontade dos “cenários da guerra”. E toda a gente, sem dar por isso, fala dos cenários, de trás para a frene, cenários disto e daquilo, o cenário na ordem do dia, ou na ordem do mundo, ou ele ,mesmo, o mundo, como cenário.

 

Podíamos acrescentar as "cenas dantescas" e as "situações kafkianas" ou, tão cada vez mais frequente, a exclamação "porra, surreal!” O mundo anda estranho. Se calhar sempre andou, mas agora parece mais. Estamos muito em cima do mundo e o mundo está muito em cima de nós. Eu aprecio particularmente quando alguém acusa um terceiro de ser "um poeta", assim mesmo, com o pronome a demarcar o território metonímico da expressão, no sentido de idilista ou sonhador ou lunático (em sentido figurado, claro, que as palavras são cada vez menos a sua raiz semântica e cada vez mais a sua contingência prática). Também há aqueles que, referindo-se a certos projectos, logo atiram com a sentença "isso é poesia", querendo dizer que é impossível, porque talvez a poesia se tenha tornado impossível ou, pelo menos, improvável. Ultimamente é tudo conceito e narrativa. Qualquer tasco tem de ter um conceito para servir cafés e águas com gás e os argumentos utilizados na apresentação do conceito redundam em narrativas. Talvez isto esteja certo. Falamos por metáforas ou lá o que é. E certas expressões funcionam como que metáforas de factos e dados que pronunciados objectivamente perdem a graça. Estamos carentes de graça, por isso dizemos aflorar como se estivéssemos a tratar de um jardim e desarvoramos como quem descortiça. Isto são comparações. Felizes ou infelizes fazem parte do nosso dia-a-dia com as palavras. O que definitivamente perdeu sentido foi a expressão "vida de cão". Há deles com uma vidinha tão invejável. É ainda Abel Neves quem diz: «Não importa que as pequenas coisas sejam pensadas, trabalhadas e apresentadas de modo complexo. O que importa é que as grandes coisas o sejam de um modo simples.» Karl Kraus também disse algo semelhante num dos seus famosos aforismos: «O uso de palavras pouco usuais é um vício literário. Só se deve atrapalhar o público com dificuldades intelectuais.» Eu julgo que andamos todos a dizer coisas sabendo que o silêncio seria mais aconselhável. Ainda assim, dizemos e escrevemos o que é suposto pensarmos. Ou não. Às vezes as palavras surgem automaticamente, depois alindam-se ou desconstroem-se. Talvez devêssemos dizer derridam-se. Há quem invente palavras, as que tem não chegam, há quem precise de palavras novas para dizer coisas velhas. Nada de novo há a dizer, está tudo mais ou menos na mesma. O essencial foi dito e escrito. A gente finge que não e então cita este e aquele e aqueloutro, acumulamos frases que disparamos como balas na direcção dos ouvintes. Os ouvintes são as presas. O leitor é a presa do escritor. O escritor é um caçador. Mas deixa-me estar calado, já falei mais do que devia. A caça agora está tão mal vista. É a caça e as touradas.

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