Agora que o Verão ameaça esmorecer e o sol ficará
embaciado por nuvens intimidantes, permitam-me que vos fale de sombras. Há um
par de milhares de anos, um filósofo chamado Platão inventou uma parábola para
nos encaminhar na direcção da verdade. Nessa parábola as pessoas viviam acorrentadas
dentro de um caverna, forçadas a olhar para uma parede onde eram projectadas sombras do movimento no exterior da caverna. A realidade para os homens no interior da
gruta resumia-se àquele mundo de sombras captado pelos sentidos, nada mais havia senão as sombras e os sons chegados do exterior. Até
que um deles se libertou dos grilhões, tendo então oportunidade de descobrir o que se escondia
por detrás das sombras. Um novo mundo se apresentava diante dos seus olhos, um mundo
de luz, mas mais relevante ainda era a descoberta de que a realidade não podia ser
resumida ao que os nossos sentidos percepcionam. Por detrás dos sentidos,
algo se escondia. Por detrás das sombras, algo havia. Essa descoberta de um mundo para além das sombras
encaminhou-nos na direcção da luz, ou seja, da verdade. Ora, foram precisos
muitos anos para desfazer o mito de que a verdade é assim tão luminosa e de
que nas sombras não existe algo de substancialmente verdadeiro.
Apresento-vos, minhas filhas, Pedro Schlemil, o homem que, segundo Adelbert von Chamisso (1781-1838), cedeu a sua sombra
a um desconhecido em troca da bolsa de Fortunatus, «uma bolsa de marroquim com
grossos cordões, muito sólidos», cheia de moedas de ouro sem fim. «De que
serviam as asas a um homem solidamente amarrado com correntes de ferro? Só para
lhe acrescentarem o desespero», conclui Schlemil. De facto, podeis imaginar o
desespero de alguém que, subitamente, deixe de ser perseguido pela própria sombra.
É como deixar de ser iluminado. Para passar despercebido no meio dos outros,
só mesmo deixando de andar ao sol. O resto da história ficará a vosso encargo,
pois pretendo também apresentar-vos Erasmo Spikher. Devemos a E. T.
A. Hoffmann (1776-1822) o relato das suas angústias. Tal como Schlemil, também Spikher
negociou algo de que não imaginaríamos um corpo privado: o seu reflexo. Fê-lo por
paixão, depois de haver sido infiel, não resistindo à tentação de uma figura
estranha em conluio com uma dama cuja beleza o inebriava. «Um dia encontrou-se
com um tal Pedro Schlemihl. Este tinha vendido a sombra; ambos pensaram
caminhar juntos, na esperança de que Erasmo Spikher projectasse a sombra
necessária, enquanto Pedro Sschlemil fornecia o reflexo que faltava. Mas não
deu resultado.» Por fim, apresento-vos o sábio cuja sombra ganhou vida própria.
Conta-nos Hans Christian Andersen (1805-1875): o desplante da sombra foi
tal que, a dada altura, chegou a sugerir ao próprio sábio que lhe fizesse de sombra,
invertendo assim os papéis: «A sombra era dono e senhor e o homem passou a ser
sombra.»
Podeis encontrar todas estas histórias no livro Contos dos Homens Sombra
(Editorial Estampa, 1983), traduzidas e introduzidas por Manuel João Gomes, facto que, por si só, é já bom motivo para as terdes em boa consideração. Saltei o homem que perdeu o nariz, também constante
no volume, por dele vos ter dado nota a propósito dos contos de Nikolai
Gógol que outrora vos ofereci. Pretendo antes salientar que sem sombra e
sem reflexo um homem está condenado à solidão. Não só ninguém entenderia que
andássemos por aí sem sombra ou o reflexo, como ficaríamos privados de algo essencial à nossa natureza. A
sombra e o reflexo de um ser humano são a sua linguagem, pois todas as palavras são
sombras das coisas, são reflexos de pensamentos e ideias, concepções. Ninguém
vê o infinito senão através do seu reflexo na palavra que o nomeia. Em perdendo sombra e reflexo, estamos condenados a esconder-nos nas trevas para não
cairmos no desespero de sermos incompreendidos.
Aceitai como fundamentais
as sombras projectadas na parede e o rosto reflectido no espelho. Se ao longo
dos anos ele adquire diferentes aspectos é, precisamente, para nos dar conta de
quão contingencial é a nossa permanência neste mundo iluminado por uma estrela
rodeada de treva. Que não desperdiceis nenhuma das dimensões do vosso ser é o meu desejo ao falar-vos destes homens que negociaram sombra e reflexo
sem se darem conta de que estavam a negociar-se a si mesmos, privando-se de
identidade, vestindo o fato do defunto. Diferente será se a nossa sombra
adquirir vida própria, o que também não é raro e disso estais prevenidas por
saberdes ser essa a condição necessária à criação. Não é o livro que
escrevemos, o quadro que pintamos, o filme que realizamos, não é a peça que
encenamos a nossa própria sombra ganhando autonomia para nos fazer perdurar no tempo e nos dispersar no espaço? «A palavra é uma
sombra», diz-se no conto de Andersen . A sombra que nos projecta,
acrescento eu. Mas tende mão nela, que nem por um momento deixeis de ter mão nela. Se a perderdes, tendes a loucura à perna. Um tormento.
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