HEARD SOMEBODY SAY (2005)

 

Fui ver a peça de Zúñiga. Diverti-me. A cena transformada em jogo de sobreposições, conjugações improváveis, três actores a divagar sobre o que o teatro possa ser e o que possa ser representar. Um texto lúdico, provocador, pejado de ironia e de jogos de palavras, como no título do volume Peaux et Scies. Terão cheiro, as palavras? A palavra cinema cheira a pipocas. E a palavra teatro, cheirará a quê? O corpo esguio e a cabeleira branca do José Luís Ferreira a dançar El amor es un francotirador, inesperada composição da actriz argentina Lola Arias, enviou-me para algum cinema de David Lynch, mas rapidamente dei o salto para a música de Devendra Banhart, que foi criado na Venezuela e por isso canta em castelhano e tem também aquela misteriosa elegância a que os críticos deram o nome de freak folk. São associações livres e ingovernáveis, elas mesmas sobrepõem-se à razão vindo à tona do pensamento como bolhas de ar cuspidas pelo subsolo da memória. Surgem sem cheiro. Os olhos dos actores rebolam como berlindes pela fraga da lucidez abaixo. Em breve, enlouquecerão. Assim o pensamento, emaranhando-se no fio da memória, preso a reminiscências e cativo de recordações. Assomam amiúde palavras cujo significado desconheço. O que significa espúrio? Consulto o dicionário e decepciono-me, tem um som que em nada reflecte os inumeráveis sinónimos sugeridos. Espúrio cheira a ferro. O que há de verdadeiro nos dicionários? A memória das línguas. Mas o que há de verdadeiro na memória? Apenas o som escutado na nudez, quando a cabeça abre alas ao pensamento permitindo que ele se afaste do corpo deixando-nos entregues a uma fé inexplicável no silêncio. Como naquela canção, «And when your gown dissolves in a prayer / You'll hear a sound / That rings true and fair.» Hoje termina um mês, amanhã começa outro. E assim sucessivamente até espúrios serem os dias afundados em reminiscências silenciosas de um homem que dança só.