Entre as diversas obras escritas e
publicadas por Søren Kierkegaard (1813-1855), recorrendo a vários pseudónimos e
obedecendo a um impressionante ímpeto criativo, Estádios na via da vida (1845) é uma das mais que me perturba. A
referência a O Banquete, de Platão,
fez com que a livro ficasse também conhecido como O Banquete ou, noutras edições, pelo subtítulo In Vino Veritas. O banquete em que cinco indivíduos se reúnem para
discutir o amor não tem o interesse do volume platónico, pois, na generalidade,
perdem-se em considerações supérfluas sobre a natureza da mulher pouco
aprofundando a temática do amor. Eis uma obra que, aos dias de hoje, seria
facilmente excomungada caso a lessem, não só pelo que se diz acerca do
feminino, mas também por algumas tiradas bastante desagradáveis. Note-se, por
exemplo, esta, atribuída ao organizador do banquete, de seu nome Constantino:
«Só um homem de cor, um homem que não nos parece totalmente um ser racional, um
homem que é capaz de ficar verde quando acossado pela cólera, como todos sabem
que é de facto verificado em fisiologia, só um homem desses, repito, seria
capaz de levar as coisas para o trágico quando verificasse que a mulher o
enganava.» Enfim, coisas que se foram escrevendo no mais alto degrau do
pensamento filosófico ocidental. As cogitações sobre sedução e matrimónio
também não me excitam particularmente nesta peça do filósofo dinamarquês.Por
outro lado, anima-me bastante essa ideia de no vinho estar a verdade. A
expressão é antiga e, aparentemente, universal. Plínio, o Velho (23-79), cunhou-a
em latim na sua História Natural.
Alceu de Mitilene já teria dito algo semelhante em grego. Ao que parece, a
coisa tomou forma na antiga Germânia. Era por lá costume os participantes em
discussões concelhias apanharem grandes bebedeiras, pois acreditavam que o
efeito do vinho ajudava a expressar a verdade. O vinho provocaria um discurso autêntico
e sincero. Leio na Wikipédia que na China existe a máxima “depois do vinho,
temos a palavra verdadeira”. Isto concorda com o aforismo segundo o qual
Confúcio, muito frugal em matéria de comes, nunca se retraía em matéria de
bebes: «Apenas no caso do vinho não punha a si próprio qualquer limite rígido.
Simplesmente, nunca bebia até ao ponto de ficar confuso.» O segredo estava em
encontrar aquele ponto em que a pinga não se sobrepõe à clareza. O álcool, por
regra, desinibe. Por isso amam-no tanto os artistas e os pensadores e demais
gente dada às coisas do pensamento, assim como o povo em geral. Como sabemos, o
povo em geral sobrevive num estado permanente de sufocação social. O vinho não
só ajuda a esquecer, como dizia o marinheiro do poema de O’Neill, como provoca
o riso, atiça a ira, encoraja, estimula. No talmude, a máxima In vino veritas
traduz-se em “o vinho entra, o segredo sai”. Pela mesma batuta afina Kierkegaard,
acrescentando-lhe curiosas comparações. Logo no Antelóquio, lemos:
Não
basta que a recordação seja fiel; é preciso também que ela resulte de um
concurso feliz de condições. Tal como o vinho deve conservar o perfume
rescendente da vida, dentro do vaso em que se encontra fechado. Não é em
qualquer tempo que se esmagam as uvas, porque nesta operação a temperatura é um
dos mais importantes factores; assim também o vivido não se presta sempre ao
trabalho de recordação; não se presta sempre, nem em todas as circunstâncias.
Temos aqui uma nova relação possível
entre o vinho e a memória, já que frequentemente ele surge associado à
necessidade de esquecer. Neste caso, ele estabelece uma relação com a memória
que se assemelha à de uma comporta cedendo à força das águas. É como se
misturado com o sangue o vinho forçasse as comportas do corpo libertando a memória, jorrada em confissões sem amarras nem constrangimentos.
Outras metáforas se prestam a tal serviço:
Haverá
embriaguez que valha a de quem sabe gozar o silêncio? Em vão levará o bebedor a
taça aos lábios, num gesto rápido; não conseguirá exaltar-se com a prontidão da
embriaguez do silêncio, porque esta aumenta a cada instante! O licor capitoso
que a taça oferece não é mais do que uma gota no oceano do silêncio infinito em
que afogo a minha sede! Que miséria também a dessa efervescência de todos os
vinhos famosos do mundo, comparada com a opulência do incessante fermento que o
silêncio contém para sempre renovar! Nada há, porém, que tão facilmente se desfaça
como a embriaguez do silêncio; uma palavra basta para acabar com o encanto!
Aqui parece-nos ser o teólogo a falar. O
silêncio será o da oração, aquele momento em que a confissão surge sem ser necessário
verbalizá-la. Isto deixa-nos uma dúvida acerca dos méritos do banquete encenado
e levado a cabo. Não serão as palavras proferidas durante o festim traídas pela
circunstância? Devemos confiar nelas? No Colóquio diz-se que «os discursos
perdem muito do seu alcance ao serem proferidas entre os copos.» O lema In vino
veritas acaba assim por ser um mito desfeito ao sabor de Château Margaux. A influência
do vinho revela-se ineficaz. A verdade não vem do vinho porque ela não
é partilhável, à verdade chega-se em silêncio pelo silêncio, é algo que se
escuta por própria voz interior. Da mesma forma que a relação amorosa é
impulsionada pela busca do prazer, também a verdade é impulsionada pelo vinho,
mas nem no primeiro caso o amor é ideal nem no segundo a verdade é absoluta.
Isso são coisas que se alcançam em solidão e no silêncio. A via de Kierkegaard é, portanto, espiritual.
Decepcionante.
1 comentário:
Se calhar o silêncio é uma espécie de pílula do dia seguinte, o que não deixa de ser decepcionante, embora não pela espiritualidade mas pela consciência.
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