quarta-feira, 29 de setembro de 2021

IN VINO VERITAS

 


Entre as diversas obras escritas e publicadas por Søren Kierkegaard (1813-1855), recorrendo a vários pseudónimos e obedecendo a um impressionante ímpeto criativo, Estádios na via da vida (1845) é uma das mais que me perturba. A referência a O Banquete, de Platão, fez com que a livro ficasse também conhecido como O Banquete ou, noutras edições, pelo subtítulo In Vino Veritas. O banquete em que cinco indivíduos se reúnem para discutir o amor não tem o interesse do volume platónico, pois, na generalidade, perdem-se em considerações supérfluas sobre a natureza da mulher pouco aprofundando a temática do amor. Eis uma obra que, aos dias de hoje, seria facilmente excomungada caso a lessem, não só pelo que se diz acerca do feminino, mas também por algumas tiradas bastante desagradáveis. Note-se, por exemplo, esta, atribuída ao organizador do banquete, de seu nome Constantino: «Só um homem de cor, um homem que não nos parece totalmente um ser racional, um homem que é capaz de ficar verde quando acossado pela cólera, como todos sabem que é de facto verificado em fisiologia, só um homem desses, repito, seria capaz de levar as coisas para o trágico quando verificasse que a mulher o enganava.» Enfim, coisas que se foram escrevendo no mais alto degrau do pensamento filosófico ocidental. As cogitações sobre sedução e matrimónio também não me excitam particularmente nesta peça do filósofo dinamarquês.Por outro lado, anima-me bastante essa ideia de no vinho estar a verdade. A expressão é antiga e, aparentemente, universal. Plínio, o Velho (23-79), cunhou-a em latim na sua História Natural. Alceu de Mitilene já teria dito algo semelhante em grego. Ao que parece, a coisa tomou forma na antiga Germânia. Era por lá costume os participantes em discussões concelhias apanharem grandes bebedeiras, pois acreditavam que o efeito do vinho ajudava a expressar a verdade. O vinho provocaria um discurso autêntico e sincero. Leio na Wikipédia que na China existe a máxima “depois do vinho, temos a palavra verdadeira”. Isto concorda com o aforismo segundo o qual Confúcio, muito frugal em matéria de comes, nunca se retraía em matéria de bebes: «Apenas no caso do vinho não punha a si próprio qualquer limite rígido. Simplesmente, nunca bebia até ao ponto de ficar confuso.» O segredo estava em encontrar aquele ponto em que a pinga não se sobrepõe à clareza. O álcool, por regra, desinibe. Por isso amam-no tanto os artistas e os pensadores e demais gente dada às coisas do pensamento, assim como o povo em geral. Como sabemos, o povo em geral sobrevive num estado permanente de sufocação social. O vinho não só ajuda a esquecer, como dizia o marinheiro do poema de O’Neill, como provoca o riso, atiça a ira, encoraja, estimula. No talmude, a máxima In vino veritas traduz-se em “o vinho entra, o segredo sai”. Pela mesma batuta afina Kierkegaard, acrescentando-lhe curiosas comparações. Logo no Antelóquio, lemos:
 
Não basta que a recordação seja fiel; é preciso também que ela resulte de um concurso feliz de condições. Tal como o vinho deve conservar o perfume rescendente da vida, dentro do vaso em que se encontra fechado. Não é em qualquer tempo que se esmagam as uvas, porque nesta operação a temperatura é um dos mais importantes factores; assim também o vivido não se presta sempre ao trabalho de recordação; não se presta sempre, nem em todas as circunstâncias.
 
Temos aqui uma nova relação possível entre o vinho e a memória, já que frequentemente ele surge associado à necessidade de esquecer. Neste caso, ele estabelece uma relação com a memória que se assemelha à de uma comporta cedendo à força das águas. É como se misturado com o sangue o vinho forçasse as comportas do corpo libertando a memória, jorrada em confissões sem amarras nem constrangimentos. Outras metáforas se prestam a tal serviço:
 
Haverá embriaguez que valha a de quem sabe gozar o silêncio? Em vão levará o bebedor a taça aos lábios, num gesto rápido; não conseguirá exaltar-se com a prontidão da embriaguez do silêncio, porque esta aumenta a cada instante! O licor capitoso que a taça oferece não é mais do que uma gota no oceano do silêncio infinito em que afogo a minha sede! Que miséria também a dessa efervescência de todos os vinhos famosos do mundo, comparada com a opulência do incessante fermento que o silêncio contém para sempre renovar! Nada há, porém, que tão facilmente se desfaça como a embriaguez do silêncio; uma palavra basta para acabar com o encanto!
 
Aqui parece-nos ser o teólogo a falar. O silêncio será o da oração, aquele momento em que a confissão surge sem ser necessário verbalizá-la. Isto deixa-nos uma dúvida acerca dos méritos do banquete encenado e levado a cabo. Não serão as palavras proferidas durante o festim traídas pela circunstância? Devemos confiar nelas? No Colóquio diz-se que «os discursos perdem muito do seu alcance ao serem proferidas entre os copos.» O lema In vino veritas acaba assim por ser um mito desfeito ao sabor de Château Margaux. A influência do vinho revela-se ineficaz. A verdade não vem do vinho porque ela não é partilhável, à verdade chega-se em silêncio pelo silêncio, é algo que se escuta por própria voz interior. Da mesma forma que a relação amorosa é impulsionada pela busca do prazer, também a verdade é impulsionada pelo vinho, mas nem no primeiro caso o amor é ideal nem no segundo a verdade é absoluta. Isso são coisas que se alcançam em solidão e no silêncio. A via de  Kierkegaard é, portanto, espiritual. Decepcionante.

1 comentário:

atalhos disse...

Se calhar o silêncio é uma espécie de pílula do dia seguinte, o que não deixa de ser decepcionante, embora não pela espiritualidade mas pela consciência.