segunda-feira, 13 de setembro de 2021

ÚSNEA (alguns fragmentos)

 


 
(...)
 
um dia iríamos passar de um lado ao outro sobre o rio
atirámos cascalho   pensámos na outra margem
no que não se via   outras flores e pedreiras   carvão e frutos
o que não víamos
aprendemos a crer no que não estava à vista
e se estes grãos forem à terra
foi uma pergunta feita com olhar e gesto
mas nem a pergunta nem a agricultura aconteceram logo
nessa vez   os grãos estavam caídos
fomos capazes de topar que rompiam mais espigas
nas épocas em que também engordavam alguns frutos
muitos secavam   aguentavam-se mais doces
foi sorte assistir ao crescimento a partir do quase nada
e curiosamente esmagar o grão
escrever seguiu o gesto agrícola
longe ainda de gravarmos nas tabuinhas de argila
tínhamos o vislumbre   a pintura e os pirilampos
 
(…)
 
é que os deuses são reais tal qual maçãs com sementes que se vêem
uma geada queima sossegadamente a alma
e correrei com a alegria dos feirantes mas hoje não
hoje é a bondade de algumas flores
de alguns lobos dados ao bom exemplo
o que eles dão   o que eles regeneram   o que eles uivam
vozes do reino de outras astúcias
a manhã e a fermentação do pão
recapitulando
houve uma chispa   um sinal   um ínfimo botão de camélia
[para não dizer o primeiro acontecimento]
e depois   muito depois   uma idade em que o outro
era igual ao outro   sem valor
e as águas pouco se importando com açudes ou aquedutos
viemos nós
inventámos as setas de bordos rendilhados
enchemos a terra com tronos e os mares com redes
 
(…)
 
tudo vai a caminho   com restos   sem restos   tudo vai
a boca não é mais do que a pedra a luzir
o carvão a fermentar
se um fio é capaz de soltar a música
que dizer do ar
o ar metido nas nervuras do caminho
a ramagem sombria não tem claridade
o sol está fora e dentro dos folhedos
então a ramagem sombria tem claridade
olha   o bom que há a contar
é sentir como crescem as couves sem o sagrado dos livros
e aquilo espiga   dá flor
entretidos com a lavoura estamos mais dentro
do que importa fazer
custa dar brasa às letras   custa muito
e se não forem pão
que fiquem ao abandono que um vento as levará
 
(…)
 
é o que já se sabe   é pobreza repetir
não tenho fibra para o muito de gracioso que se diz
olha   vamos às uvas e deitar nódoas na tua saia
é um gosto que me fazes   que faz bem aos olhos
o suco escorrido no algodão leve
fingir que há vindima muito depois de lavados os cestos
não esperar que aconteçam aflições e deitados sob a videira
assobiar aos grilos
os cães ladram   a noite parece outra
nem facas   nem azedumes
uma tristeza aguçada que não chega a magoar
mas a perder o norte
um vapor que abre um rosal sem espinhos   o que não é verdade
vê do que somos capazes e sem quase nada
assim deitados ao abrigo das dádivas
havemos de murchar ao som de um tango
oferecidos à combustão é que não
 
(…)
 
vou assinar
por tudo e por nada as fornalhas do céu
ao fim de anos sem conto a comer
à mesma mesa de castanho velho
com as nódoas de muito vinho em cima
muito caldo   muita história
interessando-se sempre pelo pão   pelas migalhas
compreende que terá mais luz
se afastar um pouco a cortina da janela
terá mais luz   sim
estrelas acendidas são o seu olhar ardente
e os nomes é que fazem os lumes
os nomes saltam-lhe dos lábios como pólen
e não querem dizer coisas
dentro de casa tem pouca rua   pouca luz
olha a janela   a cortina   enche a boca de vinho
vai daí   esgotadas que estão as sortes
com a garrafa no fim e uma ciência de escapar à dor
chega ali à renda de andrómeda
e desaparece num fio de poeira que no amor é nada
 
Abel Neves (1956), in Úsnea, Averno, Fevereiro de 2015.

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