quinta-feira, 7 de outubro de 2021

COME ON HOME (2004)

 


Pilhas de livros por todo o lado, a cabeça num labirinto de informações sobre dois temas que, na realidade, são mais simples do que os mitos egípcios e gregos e romanos e nórdicos e indianos e ameríndios e japoneses possam fazer crer. Tudo se resume à sobrevivência, primeiro, e à festa, depois. O grande mistério é o da fermentação, essa descoberta extraordinária que vem da nossa curiosidade e capacidade de observar. Não há nada mais útil à compreensão da vida do que contemplar um corpo a decompor-se. Foi preciso parar para ver, ou terá sido por acaso enquanto percorríamos o mundo a pé inseridos em pequenos grupos de nómadas. Ali um animal desfazendo-se na terra, acolá os frutos transformando-se em solo, por todo o lado folhas caídas. O sangue derramado nas batalhas também conta, mais folhas caídas esvaindo-se de alma e a nossa curiosidade mórbida a levar à boca terra manchada de suor. Qual o sabor do sangue? Não fales de mim, não falem de mim, eu não interesso para nada, falemos de cabala, os sete princípios herméticos, o que está no céu é igual ao que está na terra, os mortos comem do mesmo pão que nós comemos e bebem do mesmo vinho que nós bebemos, nós alimentamo-nos dos mortos, somos alimentados pelos mortos, porque as sementes que lançamos à terra são mortos que enterramos e as espigas são os mortos ressuscitados e depois ceifamos o trigo, matamos, matamos e voltamos a matar para nos mantermos vivos. O ciclo. Nada disto é muito animador, é a história dos homens. Bem mais estimulante é o produto final consumido à mesa numa roda de amigos. O Dão de ontem, e aquelas broas caseiras ensopadas em molho de iscas. E a música dos Franz Ferdinand no regresso a casa. E a gente a rememorar tudo como alimento que se digere trazendo ao pensamento os perfumes da história. É bom que se diga, entretanto, que também o pensamento vai levedando. Quando estiver bom para o forno, apaguem-no.

4 comentários:

atalhos disse...

Não sei. O pensamento a crescer depois da forma é poesia. Mas é preciso muito cuidado. Quando arrefece fica irreconhecível. Dão é um bom vinho, sobretudo o branco.

hmbf disse...

Era tinto.

atalhos disse...

Então tem de experimentar o branco, e eu o tinto.

atalhos disse...

O meu avô, embora indirectamente, produzia o próprio vinho. Lembro-me sempre disto, e mais tarde comprovei, tal como hoje: o vinho Dão, tinto, para o comprador comum, é um vinho pesado, demasiado corpulento, talvez destinado a conhecedores ou a sugestões. Não faria, certamente, uma pirueta de Nureyev, e muito menos um simples passo de Omar Khayyam. É de cair redondo, mas genuíno.