Terei contado as peripécias do meu parto, pelo que evitarei repetir-me. Recordo apenas ter nascido morto. Assim fui dado, antes de me fustigarem a alma obrigando-a a retornar ao corpo. Um homem não festeja anos de morte, fica solene. Para quê fazer de um dia o evento de um ano, a efeméride do fim crescendo a partir do primeiro sopro? Para dizer a verdade, estou-me nas tintas. Estar aqui ou não estar é o mesmo. Ando por cá sabendo que deixarei de andar e logo sobre tudo quanto fui e não fui tombará um oneroso esquecimento. Melhor assim. Como as coisas estão, preferível é ser esquecido e ignorado a trazerem-te na ponta de miras corriqueiras. A mediocridade fere-me com o espanto de quem se pergunta como foi possível ter feito inimigos. Logo eu, mosca morta e silenciosa, inofensivo escorpião sem ambições para além de distância e solidão. Queria sentir-me só de mim mesmo, não ter de aguentar a minha companhia. Gérard Lesne tem uma voz tão bonita. E nem foi a ouvi-lo cantar Vivaldi ou Purcell que dei por isso. Ando sempre pela superfície em busca de coisas profundas e calha encontrá-las, depois entretenho-me a imaginar como tudo podia ter sido se num determinado momento eu tivesse tomado a decisão certa. Não se comemoram aniversários assim. Prefiro fechar os olhos e deitar-me a ouvir a pop dos Human? na voz de Lesne. Não ficará na história, mas prefiro-o ao Stabat Mater de Pergolesi ou às cantatas de Bach. O silêncio explicará porquê.
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