Nove anos antes de ser assassinado numa
praia de Óstia, Pier Paolo Pasolini (1922-1975) terá começado a escrever um
longo «poema biobibliográfico» (a expressão é do próprio Autor) publicado
postumamente com o título Poeta das
cinzas (1980). Uma nota introdutória na recente edição da editora Barco
Bêbado (Março de 2021) dá-nos conta de que o responsável pela divulgação do
poema foi o biógrafo Enzo Siciliano, que o terá encontrado entre os papéis do
poeta. O mesmo texto voltou a ser publicado na poesia integral de Pasolini,
desta feita com o título agora adoptado na belíssima edição portuguesa, em capa
rija, com desenhos de João Jacinto e posfácio de Rosa Maria Martelo: Who is Me — Poeta das Cinzas. Em 1966,
Pasolini tinha já um vasto currículo de denúncias, acusações, perseguições, agressões,
seguidos de interrogatórios policiais, detenções, processos em tribunal e
subsequentes condenações. Nesse mesmo ano chegava ao Supremo o longo processo
Amoroso-Ricotta, intentado pelo
produtor Amoroso pelo carácter escandaloso de La ricotta, 3.º episódio de Rogopag,
objecto cinematográfico que juntava filmes de Rossellini, Godard, Pasolini e
Gregoretti. Sentença: apreensão de La
Ricotta. O poema Who is Me surge
claramente estigmatizado por todo este clima, assemelhando-se logo no início ao
discurso de um prisioneiro em fase de interrogatório. Os primeiros versos são
meramente indicativos de dados biográficos que contextualizam a origem familiar
e o ambiente social subjacente a um modo particular de olhar o mundo, desde muito
cedo marcado por uma espiritualidade enraizada no cristianismo em articulação
com um marxismo apartidário. Uma passagem fugaz pelo Partido Comunista Italiano
terá servido apenas para reforçar um pensamento cívico que é mais de compaixão
para com os desfavorecidos, entre os quais o autor de As cinzas de Gramsci (1957) (con)viveu tanto na região rural do
Friul, de onde era originária sua mãe, como nos subúrbios de Roma, do que de
reivindicação de uma organização política metódica e disciplinada. Sobressai a
relação de ódio com o pai, um militar de carreira que Pasolini associa ao
fascismo, em contraste com o sentimento de amor pela mãe, realidade denotada,
desde logo, na publicação do primeiro livro de poemas em dialecto friulano: «o
fascismo não tolerava os dialectos, sinais / da não realizada unidade deste
país onde nasci» (p. 12). Este longo «poema biobibliográfico» é igualmente um
documento excepcional para a compreensão da obra de um dos mais relevantes
criadores do século XX, pelo modo absolutamente claro e desprendido do
testemunho, o qual evolui dessa primeira fase em jeito de interrogatório para
um clima confessional à maneira da melhor literatura do género. Rosa Maria
Martelo sublinha ainda, no posfácio, a dimensão cinematográfica do texto:
«Particularmente relevante neste poema é o trânsito estabelecido entre a poesia
e o cinema, e a forma como é equacionado um tópico tantas vezes presente nas
intervenções públicas de Pasolini: a sua passagem da literatura ao cinema, aqui
enquadrada numa reflexão que envolve a reapreciação da própria ideia de poesia»
(p. 51). São pistas excepcionais até para repensarmos alguma da nossa poesia
contemporânea. Penso, nomeadamente, em António Cabrita e Manuel Gusmão, dois
autores onde esta relação com o cinema, ainda que de forma dissemelhante, também
está latente. Um aspecto curioso do texto pasoliniano é a sua
declaração de afinidade para com um poeta norte-americano, um dos nomes em relevo na geração beat: «Eu amo Ginsberg: /
havia tanto tempo que não lia poemas de um poeta irmão» (p. 16). A declaração
de amor não deve ser entendida apenas sob o prisma de uma afinidade estética,
mas sim através da lente de uma filiação poética que encena um tipo de realismo
arreigado tanto à experiência vivida como a uma observação crítica do mundo, a
qual coloca num plano equivalente o estético e o ético: «Tudo lograva, na
poesia, ter uma solução. / Parecia-me que a Itália, a sua descrição e o seu
destino, / dependiam do que eu sobre ela escrevesse, / naqueles versos imbuídos
de realidade imediata, / já não nostálgica, quase como se a tivesse ganhado com
o meu suor» (p. 17). E ao falar de si é de uma certa Itália que fala, do «ódio racista
Italiano» (p. 22) — «Experimentei aquilo que experimenta um negro em Chicago, /
o terror» (p. 21) —, guiado por um catolicismo castrador e por um capitalismo
estupidificante. A conclusão viria a ser certeira: «Quem se revela ou se
confessa, ou não teme o ridículo, / acaba mal: é a lei» (idem). Foi, de facto,
a lei implacável para com um Pier Paolo Pasolini que não só se revelou e
confessou, como não temeu o ridículo. Prova disso é este “exame de consciência”
que denuncia com especial clareza um percurso de vida que foi em si mesmo um
extraordinário poema:
(…)
E hoje, dir-vos-ei, não é só preciso
comprometer-se com o escrever,
mas com o viver:
é preciso resistir no escândalo
e na raiva, mais do que nunca,
<ingénuos como animais> no matadouro,
turvos como vítimas, precisamente:
é preciso afirmar mais alto do que nunca o desprezo
pela burguesia, gritar contra a sua vulgaridade,
cuspir na sua irrealidade, a que ela elegeu como realidade,
não ceder nem numa acção nem numa palavra
no ódio total contra tudo isso, as suas polícias,
os seus magistrados, as suas televisões, os seus jornais:
e que
eu, pequeno-burguês que tudo dramatiza,
tão bem educado por uma mãe com a doce e tímida alma
<…> da moralidade rural,
gostaria de tecer um elogio
à sujidade, à miséria, à droga e ao suicídio:
eu, privilegiado poeta marxista
que tem instrumentos e armas ideológicas para combater,
e moralismo quanto baste para condenar o puro acto de escândalo,
eu, profundamente respeitável,
faço este elogio, porque a droga, o nojo, a raiva,
o suicídio
são, juntamente com a religião, a única esperança que resta:
contestação pura e acção
em que se mede a enorme iniquidade do mundo <…>.
(…)
Pier Paolo Pasolini, in Who is Me: Poeta
das Cinzas, trad. Ana Isabel Soares, Barco Bêbado, Março de 2021, p. 23.
mas com o viver:
é preciso resistir no escândalo
e na raiva, mais do que nunca,
<ingénuos como animais> no matadouro,
turvos como vítimas, precisamente:
é preciso afirmar mais alto do que nunca o desprezo
pela burguesia, gritar contra a sua vulgaridade,
cuspir na sua irrealidade, a que ela elegeu como realidade,
não ceder nem numa acção nem numa palavra
no ódio total contra tudo isso, as suas polícias,
os seus magistrados, as suas televisões, os seus jornais:
e que
eu, pequeno-burguês que tudo dramatiza,
tão bem educado por uma mãe com a doce e tímida alma
<…> da moralidade rural,
gostaria de tecer um elogio
à sujidade, à miséria, à droga e ao suicídio:
eu, privilegiado poeta marxista
que tem instrumentos e armas ideológicas para combater,
e moralismo quanto baste para condenar o puro acto de escândalo,
eu, profundamente respeitável,
faço este elogio, porque a droga, o nojo, a raiva,
o suicídio
são, juntamente com a religião, a única esperança que resta:
contestação pura e acção
em que se mede a enorme iniquidade do mundo <…>.
1 comentário:
Excelente texto. O poema calou fundo aqui, neste Brasil desgovernado por idiotas
Enviar um comentário