sábado, 2 de outubro de 2021

WHO IS ME

 

Nove anos antes de ser assassinado numa praia de Óstia, Pier Paolo Pasolini (1922-1975) terá começado a escrever um longo «poema biobibliográfico» (a expressão é do próprio Autor) publicado postumamente com o título Poeta das cinzas (1980). Uma nota introdutória na recente edição da editora Barco Bêbado (Março de 2021) dá-nos conta de que o responsável pela divulgação do poema foi o biógrafo Enzo Siciliano, que o terá encontrado entre os papéis do poeta. O mesmo texto voltou a ser publicado na poesia integral de Pasolini, desta feita com o título agora adoptado na belíssima edição portuguesa, em capa rija, com desenhos de João Jacinto e posfácio de Rosa Maria Martelo: Who is Me — Poeta das Cinzas. Em 1966, Pasolini tinha já um vasto currículo de denúncias, acusações, perseguições, agressões, seguidos de interrogatórios policiais, detenções, processos em tribunal e subsequentes condenações. Nesse mesmo ano chegava ao Supremo o longo processo Amoroso-Ricotta, intentado pelo produtor Amoroso pelo carácter escandaloso de La ricotta, 3.º episódio de Rogopag, objecto cinematográfico que juntava filmes de Rossellini, Godard, Pasolini e Gregoretti. Sentença: apreensão de La Ricotta. O poema Who is Me surge claramente estigmatizado por todo este clima, assemelhando-se logo no início ao discurso de um prisioneiro em fase de interrogatório. Os primeiros versos são meramente indicativos de dados biográficos que contextualizam a origem familiar e o ambiente social subjacente a um modo particular de olhar o mundo, desde muito cedo marcado por uma espiritualidade enraizada no cristianismo em articulação com um marxismo apartidário. Uma passagem fugaz pelo Partido Comunista Italiano terá servido apenas para reforçar um pensamento cívico que é mais de compaixão para com os desfavorecidos, entre os quais o autor de As cinzas de Gramsci (1957) (con)viveu tanto na região rural do Friul, de onde era originária sua mãe, como nos subúrbios de Roma, do que de reivindicação de uma organização política metódica e disciplinada. Sobressai a relação de ódio com o pai, um militar de carreira que Pasolini associa ao fascismo, em contraste com o sentimento de amor pela mãe, realidade denotada, desde logo, na publicação do primeiro livro de poemas em dialecto friulano: «o fascismo não tolerava os dialectos, sinais / da não realizada unidade deste país onde nasci» (p. 12). Este longo «poema biobibliográfico» é igualmente um documento excepcional para a compreensão da obra de um dos mais relevantes criadores do século XX, pelo modo absolutamente claro e desprendido do testemunho, o qual evolui dessa primeira fase em jeito de interrogatório para um clima confessional à maneira da melhor literatura do género. Rosa Maria Martelo sublinha ainda, no posfácio, a dimensão cinematográfica do texto: «Particularmente relevante neste poema é o trânsito estabelecido entre a poesia e o cinema, e a forma como é equacionado um tópico tantas vezes presente nas intervenções públicas de Pasolini: a sua passagem da literatura ao cinema, aqui enquadrada numa reflexão que envolve a reapreciação da própria ideia de poesia» (p. 51). São pistas excepcionais até para repensarmos alguma da nossa poesia contemporânea. Penso, nomeadamente, em António Cabrita e Manuel Gusmão, dois autores onde esta relação com o cinema, ainda que de forma dissemelhante, também está latente. Um aspecto curioso do texto pasoliniano é a sua declaração de afinidade para com um poeta norte-americano, um dos nomes em relevo na geração beat: «Eu amo Ginsberg: / havia tanto tempo que não lia poemas de um poeta irmão» (p. 16). A declaração de amor não deve ser entendida apenas sob o prisma de uma afinidade estética, mas sim através da lente de uma filiação poética que encena um tipo de realismo arreigado tanto à experiência vivida como a uma observação crítica do mundo, a qual coloca num plano equivalente o estético e o ético: «Tudo lograva, na poesia, ter uma solução. / Parecia-me que a Itália, a sua descrição e o seu destino, / dependiam do que eu sobre ela escrevesse, / naqueles versos imbuídos de realidade imediata, / já não nostálgica, quase como se a tivesse ganhado com o meu suor» (p. 17). E ao falar de si é de uma certa Itália que fala, do «ódio racista Italiano» (p. 22) — «Experimentei aquilo que experimenta um negro em Chicago, / o terror» (p. 21) —, guiado por um catolicismo castrador e por um capitalismo estupidificante. A conclusão viria a ser certeira: «Quem se revela ou se confessa, ou não teme o ridículo, / acaba mal: é a lei» (idem). Foi, de facto, a lei implacável para com um Pier Paolo Pasolini que não só se revelou e confessou, como não temeu o ridículo. Prova disso é este “exame de consciência” que denuncia com especial clareza um percurso de vida que foi em si mesmo um extraordinário poema:
 
(…)
 
E hoje, dir-vos-ei, não é só preciso comprometer-se com o escrever,
mas com o viver:
é preciso resistir no escândalo
e na raiva, mais do que nunca,
<ingénuos como animais> no matadouro,
turvos como vítimas, precisamente:
é preciso afirmar mais alto do que nunca o desprezo
pela burguesia, gritar contra a sua vulgaridade,
cuspir na sua irrealidade, a que ela elegeu como realidade,
não ceder nem numa acção nem numa palavra
no ódio total contra tudo isso, as suas polícias,
os seus magistrados, as suas televisões, os seus jornais:
e que
eu, pequeno-burguês que tudo dramatiza,
tão bem educado por uma mãe com a doce e tímida alma
<…> da moralidade rural,
gostaria de tecer um elogio
à sujidade, à miséria, à droga e ao suicídio:
eu, privilegiado poeta marxista
que tem instrumentos e armas ideológicas para combater,
e moralismo quanto baste para condenar o puro acto de escândalo,
eu, profundamente respeitável,
faço este elogio, porque a droga, o nojo, a raiva,
o suicídio
são, juntamente com a religião, a única esperança que resta:
contestação pura e acção
em que se mede a enorme iniquidade do mundo <…>.
 
(…)
 
Pier Paolo Pasolini, in Who is Me: Poeta das Cinzas, trad. Ana Isabel Soares, Barco Bêbado, Março de 2021, p. 23.

1 comentário:

Evandro disse...

Excelente texto. O poema calou fundo aqui, neste Brasil desgovernado por idiotas