domingo, 14 de novembro de 2021

PERTINHO DA TORRE EIFFEL

 


   Um casal urbano com pouco dinheiro, informa-nos a didascálica inicial. Ele chama-se Jasmim, ela chama-se Jana. Logo na primeira das oito cenas em que a peça se desenrola, ficamos a saber, pela voz dele, que vivem juntos há sete anos. Tudo se passa no interior de um pequeno apartamento, espaço exíguo ocupado pelo jovem casal que preenche o tempo como funâmbulos numa corda bamba. Sobre eles pesa a nuvem grave de uma separação iminente, mas assim como dão um passo nessa direcção, logo o exterior os empurra de novo para a redoma em que se encontram confinados. Perdem-se em hesitações, avanços e recuos, indefinições, nada na vida deles parece destinado a concretizar-se. Às tantas, julgamos estar a olhar para dois peixes num desses aquários domésticos que adornam salas como jarras com flores de plástico. Mas depois associamo-los a um globo de neve, como aquele para que o título Pertinho da Torre Eiffel remete.
   Tal como a vida de Jana e de Jasmim, também o globo está avariado. A neve não funciona, constata Jasmim. «Antigamente virava-se esta merda e ficavam a cair uns farripos de neve», diz. Jana emociona-se ao ouvi-lo, talvez por fazer o mesmo tipo de associação que agora fazemos. A neve deixou de funcionar na vida do casal, é como se o tempo tivesse parado, o passar das estações deu lugar a uma repetição, tudo patina no espaço da vida real como veículos no gelo incapazes de sair do mesmo lugar. A estagnação tolheu-os e agrilhoou-os, ainda que permanentemente ameaçados pela ruptura. Sucede que a própria ameaça de ruptura se tornou rotineira, faz parte de um jogo que satura a intimidade com discussões parvas, inúteis, inconsequentes, mas por vezes violentas e até cruéis. É um jogo de provocações, simulações, manipulações, um desses jogos que desgastam a paciência até a presença do outro se tornar insuportável. Pelo meio fazem amor, mas até nesse reencontro com a paixão estas vidas parecem disfuncionais. De manhã, ele diz que é melhor comerem qualquer coisa porque «uma pessoa se coiso-e-tal tem de comer». Logo ela contrapõe, friamente, «não fui eu que fodi, foste tu».
   Já nem a paixão equilibra este casal na corda cada vez mais bamba de um mundo onde estão sozinhos sem na realidade estarem isolados. A mãe de Jana, figura fisicamente ausente, interpõe-se pelo telefone e à porta de casa. Chega a entrar no apartamento, mas nunca a vemos. É personagem em off. Tem o efeito das pessoas que observam os peixinhos dentro do aquário, com as retinas ampliadas pelo vidro que se intromete entre interior e exterior. Surge-nos deformada pela ausência, como se fosse um fantasma. Mas não é, está viva, é real. Interfere, condiciona, coage.
   Há nestas relações uma carência de nitidez. Logo no início, Jasmim mostra-se espantado por Jana se incomodar com os binóculos no parapeito da janela. Porque será que os binóculos a incomodam? Será que por serem um instrumento que nos aproxima do real com clareza? Preferiria Jana viver um sonho que a realidade traiu? É uma hipótese, tal como é uma possibilidade que a mãe de Jana seja a melhor personificação da realidade nesta peça onde tudo se exercita nesse escrutínio do próximo pelo distante. Quer isto dizer que não é por estar ausente, distante, que a mãe deixa de influir e condicionar, seja como pretexto ou desculpa para Jasmim partir/ficar, seja como condicionante efectiva nas decisões da filha dependente.
   Eis-nos perante outra dimensão do jogo, a dimensão das dependências. Enquanto os quadros se sucedem, o espectador é levado pela encenação de Fernando Mora Ramos a olhar para o casal sobre diferentes pontos de vista. O cenário move-se. Se tivéssemos um globo de neve na mão, agitaríamos o globo, inverteríamos as posições, para observar o efeito da neve a cair num cenário estático. Se, por outro lado, estivéssemos diante de um desses aquários redondos que servem de centro de mesa, andaríamos à volta dele espreitando os movimentos dos peixes. Neste caso, o espectador está circunscrito à sua posição estática e o que se movimenta, oferecendo diferentes ângulos de observação, é o cenário onde a acção decorre. Talvez esta seja uma maneira de desmontar a dependência que sentimos enquanto observadores da realidade, uma maneira de oferecer diferentes pontos de vista que, de outro modo, ficariam reduzidos à posição demarcada daquele que observa um rosto sem poder ver o que se esconde por detrás do rosto.
   Aceitemos a hipótese de que o outro lado, o avesso, seja o exterior ausente nesta peça, a sociedade que invade os diálogos, a estranha e ameaçadora figura da mãe, os empregos precários que se apossam destas vidas tornando-as, também elas, precárias, instáveis, contingentes. O sonho não foi de todo afastado, mas o real como que o comprimiu até uma espécie de sufoco. Tudo aparenta, então, uma dificuldade desesperante e extenuante, incapaz de aceitar a alegria de viver e a felicidade senão enquanto artifícios de um ideal traído pelas circunstâncias. Veja-se como são incapazes de lidar com o silêncio e a paz dos fins-de-semana, com esses momentos de ócio em que ficam diante um do outro sem saberem o que fazer.
   A propósito de fins-de-semana, dizia Thomas Bernhard: «o sábado é um dia que todos receiam, ainda muito mais que o domingo, pois no sábado todos sabem que têm ainda pela frente o domingo e o domingo é o dia mais terrível, mas ao domingo segue-se a segunda-feira e esta é dia de trabalho, o que torna o domingo suportável.» Na sua maioria, as pessoas não estão habituadas a não terem o que fazer. Ficam atrapalhadas diante do nada e do silêncio, são incapazes de o partilhar por julgarem nada haver a partilhar no nada e no silêncio. Então inventam coisas para preencher esse espaço vazio que se intromete entre o eu e o outro. O vácuo, acrescentava Bernhard, torna as pessoas meio malucas. A dificuldade está em não saber como preencher esse tempo e espaço comuns que nos expõe à presença do outro. No trabalho obedece-se ao cumprimento de tarefas, está tudo definido, cada qual sabe o papel que tem de cumprir, é mais prático. No ócio, as mãos ficam sem saber onde se meter. Agarram-se ao cigarro para disfarçarem a ruína, escondem-se nos bolsos, buscam desesperadamente uma qualquer ocupação que as liberte de se sentirem inúteis. O que fazer quando nada há para fazer?
   Curioso como a hipótese de um “bom emprego” percorre as «discussões de casalinho» do princípio ao fim da peça, minando a sobrevivência e armadilhando o amor nestas existências fragilizadas pela mais natural das dúvidas: o que é uma vida normal? Daí que o futuro projectado por Jasmim e Jana acabe sempre abortado, voluntariamente interrompido por motivos acerca dos quais não nos cabe especular. É preciso ver para pensar, é preciso observar e assistir para formular um ponto de vista que, desconfiamos, dificilmente poderá ser unívoco.
   Desarrumação, desnorte, precariedade, são condições frequentes em várias personagens de Abel Neves. Pertinho da Torre Eiffel não é excepção. Jasmim divide-se entre o desemprego e trabalhos esporádicos como baby-sitter. Jana, a certa altura, desabafa com a mãe ao telefone: «claro que é precário como os outros.» Refere-se aos empregos, ao ganha-pão. Das discussões entre ambos, ora absurdas e cómicas, ora trágicas e provocadoras, sobressai o desejo de uma vida normal, como a das pessoas que não têm problemas. Que pessoas serão essas? Uma vida normal é o que lhes sobra de ideal, espécie de utopia traída pelas circunstâncias.
   Jasmim, nome de flor, tenta normalizar a relação introduzindo flores no meio do tabuleiro. Flores: que papel desempenham no decorrer da acção? São recorrentes na obra de Abel Neves. Em Nunca estive em Bagdad, peça com a qual Pertinho da Torre Eiffel estabelece vários pontos de contacto, Glória refere-se-lhes com nostalgia, como se pudessem ser refúgio do desnorte em que vive. No conto Valéria no meio das flores, estas são o último reduto num mundo onde religião e política faliram. Mas na peça Flores para mim, Catarina, paraplégica, olha com repugnância e raiva para as flores oferecidas por Mirita: «Por que é que as pessoas hão-de achar que eu gosto de naturezas mortas? Não há coisa mais degradante do que ter de aceitar flores. Ficar com elas, vê-las definhar e apodrecer bem diante dos olhos é um espectáculo degradante.» Qual o papel das flores em Pertinho da Torre Eiffel? Estão em cena desde o início, são vítimas da fúria de Jana — «odeio flores, e jarras de plástico, estás farto de saber que odeio flores» —, são réstia de ternura atrapalhada nas mãos de Jasmim: «a florista disse-me que se aguentam muito tempo, não sei, acho que podem ficar fora de água, não me lembro bem do que ela me disse.» Talvez sejam o que sobra de beleza e sensibilidade num universo cruel, porventura uma projecção da natureza morta em que a existência das personagens se transformou, ou quem sabe um resquício de genuinidade e pureza em vidas devastadas pela impiedade do real.
   A cada espectador estas duas personagens inspirarão sentimentos diversos mediante a empatia que consigamos gerar por elas. Não estão em palco para nos convencer de nada, da mesma forma que o mundo não é o que é para nos convencer do que quer que seja. Quase no final, Jana pergunta a Jasmim porque tem ele que «ser igual a toda a gente horrível que anda por aí». Ele pede-lhe desculpa, porventura ao contrário do que fariam todas essas pessoas horríveis que andam por aí. Serão desculpas sentidas? Será o pedido autêntico? Poderá restar alguma autenticidade numa vida edificada sobre a mentira?

A peça Pertinho da Torre Eiffel, de Abel Neves, está publicada pelas Edições Húmus, 1.ª edição: 29 de Fevereiro de 2020.

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