O que pretendemos dizer quando dizemos povo? Será o povo um conjunto de várias unidades ou uma unidade isolada e uniforme? Se for conjunto, o que o caracteriza? É feito de diversidade ou, por outro lado, tem uma identidade unívoca? Se for uno, o povo tem um só corpo, um só par de pernas para andar, um único coração a bater? Pensa todo da mesma maneira ou no cérebro do povo são muitas as cabeças que pensam? Será o povo um conjunto imenso de heterónimos de uma nação, de uma cultura? Ou será um ovo em que germina a discórdia? Um povo fala uma e a mesma língua ou tem várias línguas para se exprimir? O povo trabalha? Não há preguiçosos entre o povo? Não há ociosos entre o povo? Um homem deitado à sombra de uma árvore cogitando sobre uma maçã que acabou de cair, é povo? A própria maçã não poderá ser, de algum modo, o efeito de uma acção humana articulada entre o povo? Quem plantou a macieira? Quem a tratou? Quem semeou, quem ceifou, quem podou, quem colheu? Seria uma macieira selvagem? De onde veio? Trouxe-a o vento? Eu que escrevo enquanto ouço música, serei povo? E o homem que sopra desenfreadamente o saxofone? Quem inventou o saxofone? Trouxe-o o vento? Terá sido o povo a inventar o saxofone? O homem rico é povo? Participará o homem pobre mais desse conceito chamado povo do que o homem rico? E se sair uma fortuna ao homem pobre? E se o homem rico empobrecer? Ando entre o povo interrogando-me sobre a natureza do povo. À minha volta, centenas, milhares de pessoas diferentes umas das outras, geralmente amáveis e gentis, raramente indelicadas, pessoas na sua maioria receptivas e disponíveis, exceptuando algumas que me olham com desconfiança ou me afastam como a um insecto repelente. Há algo que aproxima toda esta gente tão diversa, uma humanidade a passar despercebida entre os afazeres e as ocupações e as distracções distribuídas pelas 24 horas de um dia. Há entre toda esta gente um elo que nos liga: o amor de que nascemos, a morte para que tendemos. Poderá alguém não ter nascido de um acto amoroso? Sim, claro, obviamente. Há quem nasça do acaso e quem nasça de um crime, há quem seja concebido pela conjuntura. Ainda assim, a morte une-nos, iguala-nos, define-nos. Nenhum de nós lhe escapará. Somos todos perecíveis e efémeros, frágeis, ainda que soberbamente arrogantes e rudes, todos nós quebramos quando vergados para lá dos limites suportáveis. O povo é essa matéria. Nada há de mais supremo na matéria do que o amor, a hipótese de fazer com o corpo algo digno, algo para lá da fatuidade com que geralmente encaramos o mero acaso de estarmos entre o povo supondo que, por nos colocarmos na posição de quem observa, estamos fora.
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