O universo mitológico blakeano é esquivo,
escapa a qualquer tentativa de fixação. Em Milton
(1804-1811) são múltiplas as referências que se entrecruzam, umas mais
evidentes do que outras. Percebemos que o texto resulta do cruzamento de
diversas fontes, provindas da mitologia egípcia, com referências claras a «Osíris:
Íris: Horus» na gravura 40, provindas da cabala, provindas do Antigo Testamento, do Corpus Hemeticum, do Novo Testamento, de certos mitos
nórdicos e da própria imaginação de William Blake. A estrutura quaternária
referida por Manuel Portela tem na sua base os principais pontos cardeais,
sendo que cada um deles se funda sobre os princípios herméticos da
correspondência e da polaridade. As metamorfoses e as transfigurações dos seres
evocados são difíceis de determinar, mas pelo meio vamos deparando com acções
que acabam por desembocar no princípio básico da regeneração: «Para a Grande
Ceifa & Vindima das Nações». Morte e renascimento, num mundo material
caracterizado pela finitude e num mundo mental/espiritual determinado pela
eternidade. Parece haver, por vezes, uma identificação dos seres com as nações,
o que nos leva a pensar nas criaturas imaginadas pelo poeta uma projecção das
dinâmicas históricas que geram e derrubam impérios. Tudo tende em Blake para o anúncio
profético de um novo mundo, eminentemente espiritual, assente mais na
inspiração do que na razão, no fundo um mundo à semelhança daquele que os
românticos e os idealistas contemporâneos de Blake reivindicavam ao olharem
para a Idade Média e para a Grécia Antiga com espanto, encantamento e veneração.
Trata-se da sublimação da vida espiritual, contra a voragem do racionalismo que
então tomava conta do mundo:
(..)
Venho
em Auto-aniquilação & em grandeza de Inspiração
Livrar-me da Demonstração Racional pela Fé no Salvador
Livrar-me dos trapos corrompidos da Memória pela Inspiração
Expulsar Bacon, Locke & Newton do manto de Albion
Despir-lhe os trajos andrajosos, & vesti-lo de Imaginação
Expulsar da Poesia tudo o que não for Inspiração
Para que não mais se atreva a zombar com o epíteto de Loucura
Lançado sobre os Inspiradores pelo insípido acabador de Borrões desprezíveis,
Indefinidas ou desprezíveis Rimas; ou desprezíveis Harmonias.
Quem rasteja para o Governo do Estado como a lagarta para destruir
Para livrar-me do Perguntador idiota que está sempre a perguntar,
Mas nunca é capaz de dar uma resposta: que se senta com sorriso fingido
Congeminando a pergunta em silêncio, como um ladrão na gruta;
Que publica dúvidas & chama-lhes conhecimento; cuja Ciência é o Desespero
Cuja pretensão ao conhecimento é a Inveja; cuja inteira Ciência é
Destruir o saber de muitas eras para gratificar a Inveja voraz,
Que grassa à sua volta como um Lobo dia & noite sem descanso
(…)
Neste excerto da gravura 47 encontramos
com rara clareza o programa e, atrevo-me a dizê-lo, a arte poética de William
Blake. À razão e à ciência ele prefere a inspiração e a fé. É uma poesia
erguida contra as tendências do seu tempo, contra o comércio que então
prosperava arrastando consigo todo o tipo de equívocos. Ainda não nos livrámos
de muitos deles, como esse equívoco da fama e do sucesso aqui aludido na figura
da lagarta que rasteja para o governo do estado, o tagarela que é todo ele mais
dúvidas (Descartes?) do que respostas. A inveja, enquanto fim último daquele
que anseia por fama, é o pecado de um tempo histórico que foi perdurando e se
foi agravando, encontrando aqui e acolá aqueles que se lhe opõem com projectos
dificilmente invejáveis porque dificilmente penetráveis, projectos da
imaginação e da inspiração. O diagnóstico é certeiro, a solução é questionável.
Quando a razão se impunha, Blake recupera todas as mitologias do mundo e
imprime-as em chapas como Deus cinzelou na pedra as suas leis. Até no método de
produção dos seus livros ele demonstra uma inabalável oposição àquilo que no
seu tempo era visto como progresso e evolução. Haverá nesta atitude um gesto de
resistência ou mero conservadorismo? Terá Blake sido um revolucionário com
práticas conservadoras e reaccionárias, se por este termo entendermos tudo
quanto se opõe à transformação do mundo? Não terá ele sido um transformador do
mundo conservando o saber de muitas eras que a ciência se propunha destruir? Blake,
ele próprio um princípio hermético, uma coisa e o seu contrário num só
espírito.
Livrar-me da Demonstração Racional pela Fé no Salvador
Livrar-me dos trapos corrompidos da Memória pela Inspiração
Expulsar Bacon, Locke & Newton do manto de Albion
Despir-lhe os trajos andrajosos, & vesti-lo de Imaginação
Expulsar da Poesia tudo o que não for Inspiração
Para que não mais se atreva a zombar com o epíteto de Loucura
Lançado sobre os Inspiradores pelo insípido acabador de Borrões desprezíveis,
Indefinidas ou desprezíveis Rimas; ou desprezíveis Harmonias.
Quem rasteja para o Governo do Estado como a lagarta para destruir
Para livrar-me do Perguntador idiota que está sempre a perguntar,
Mas nunca é capaz de dar uma resposta: que se senta com sorriso fingido
Congeminando a pergunta em silêncio, como um ladrão na gruta;
Que publica dúvidas & chama-lhes conhecimento; cuja Ciência é o Desespero
Cuja pretensão ao conhecimento é a Inveja; cuja inteira Ciência é
Destruir o saber de muitas eras para gratificar a Inveja voraz,
Que grassa à sua volta como um Lobo dia & noite sem descanso
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