O começo. Quando começou o começo? Eis o grande mistério irresolúvel. Terá havido um começo? Talvez o espaço tenha sempre estado aí, extenso até ao infinito, ou seja, amplo e imenso até à ausência de começo. O começo é este ir começando sem fim. Talvez o espaço tenha útero e no útero do espaço sejam geradas coisas que se distribuem por ele, como células multiplicando-se e grãos de poeira juntando-se, formando grandes, rigorosos e inexpugnáveis calhaus. Pedras de fogo no útero do espaço, explodindo e expandindo-se e multiplicando-se na sequência de embates ou encontros ou cruzamentos a partir dos quais outras coisas germinam. Espantoso mistério, o caule maleável da erva irrompendo e disseminando-se pela superfície das pedras. O espaço é fértil porque nele se conjugam elementos invisíveis aos quais damos nomes fundadores. Mas antes dos nomes eles já existiam, já tinham passado por inúmeras metamorfoses e transformações. O primeiro homem nunca existiu. Na verdade, é até provável que o homem não exista. É possível que ainda esteja por ser gerado. E que os seres que compõem isso a que chamamos humanidade não passem de micróbios na vastidão de um universo dinâmico, em permanente estado de geração e destruição e regeneração e ruína e reconstrução e degeneração e purificação. Tudo, excepto o espaço, é perecível. Sobre tais alicerces a dor dos homens deu forma ao pensamento. O pensamento terá nascido desta dor, do parto doloroso das dúvidas que exigem respostas e da multiplicidade de respostas encontradas para as mesmas dúvidas de sempre. Repetimo-nos até deixarmos de nos repetir. E isso acontecerá quando nos extinguirmos, sendo provável que depois de nós outros como nós padecerão dos mesmos tormentos. Entretanto, invertemos causas e efeitos. Digamos que colocámos os efeitos na origem das causas, para que seja mais simples ultrapassar o tempo veloz que sempre nos ganha na corrida da vida. E sobre tudo largamos uma gargalhada troante e louca, um relâmpago de riso e gozo delirante mandando às favas toda e qualquer hesitação existencial. Não se enterram cogitações, trasladam-se problemas. Desenterramos a dor para a plantar no túmulo da beleza e diante dela rirmos como tontos da vida passageira. É um gesto político, digamos, ético, por certo, mas sobretudo estético, é já o poder que nos atribuímos de haver em nós uma qualquer capacidade criativa, ainda que ínfima, ainda que inútil. Não o será, se servir o gozo de viver. É o único proveito, amigo, que ainda justifica andarmos por cá. Mergulhamos não só as mãos mas o corpo todo nas águas como se fôssemos novamente fetos dentro de um útero. E vimos à tona reparando que ainda não fomos expulsos da placenta da grande mãe, a massa de ar que nos envolve mantendo viva e activa a carne desejante, o corpo magoado que ri e a sombra que o persegue.
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