quarta-feira, 27 de abril de 2022

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #37

 


Alguém que desconheço escreve no Twitter algo como isto: «Engraçado ver as pessoas entrarem na Padaria Portuguesa para beberem um copo antes de descerem a Avenida. Revolucionários ma non troppo.» É o tipo de sentença que deve inspirar arrependimentos… ma non troppo. Como fomos dos que passaram pela Padaria para beber uma mini e comer uma empada, talvez devêssemos autoflagelar-nos e pedir perdão pelo revolucionarismo aburguesado. Não somos puros, queridas filhas. Sucede que a sentença foi proferida no Twitter, essa ferramenta revolucionária criada pelos americanos a favor da união do proletariado. Quem decretou o veredicto não o fez, por certo, dando uso a um gadget qualquer. Só pode tê-lo feito num smartphone ecológico, com ecrã táctil em vidro da Marinha Grande e bateria de pilhas recarregáveis. No corpo, nem uma peça de roupa proveniente do Bangladesh, garantia absoluta de que nenhum trabalho infantil foi explorado na confecção das cuecas ou das meias ou do sutiã ou de outra treta qualquer. Ao contrário, como sabeis, das tretas que vimos expostas em montras luxuosas ao longo da Avenida.
 
Estamos em Abril de 2022, é difícil ser revolucionário sem o ser ma non troppo. De repente damos connosco a lutar contra o imperialismo usando ferramentas imperialistas ou a criticar as fábricas de cretinos digitais colados ao smartphone durante uma mesa redonda onde se abordam essas e outras matérias como essas. Estamos sempre a cair em contradição, sobretudo quando dizemos: olhem para nós, que bem estamos em comparação com os outros. É uma tentação adorarmo-nos. Eu há muito meti na cabeça que a revolução começa na autocrítica, nessa capacidade de desconfiar das nossas próprias certezas. Não se trata de vacilar nas convicções. Trata-se, antes pelo contrário, de não as trair prescindindo de fundamentá-las no confronto com o tempo e com o outro. Trata-se de uma convicção inabalável: é na dúvida e no contraditório que aprendemos e, aprendendo, nos fazemos humanos. Um homem que seja sempre a mesma coisa é uma pedra. Nem uma pedra é, que também essa está sujeita à erosão. É um fóssil.
 
Nada que nos abrevie a alegria de havermos visto um mar de gente gritando loas à liberdade em allegro vivace. Antes de descermos, uma delegação da Techari – Associação Nacional e Internacional Cigana encheu-nos de contentamento revolucionário. Serão eles, esses, aqueles, os outros, suficientemente revolucionários para descer a Avenida reivindicando justiça para todos independentemente da etnia, fim ao racismo e à xenofobia, mais oportunidades e menos precariedade? Quem é mais revolucionário, o deputado obediente às regras do parlamentarismo ou o precário que desobedece ao patrão? Não sei, minhas filhas, sei que sobre os ombros aqueles carregam uma história mais onerosa do que qualquer um de nós poderá sequer imaginar. É por isso que vos lego este livro, “Homo Sacer e os Ciganos” (Antígona, Abril de 2014), um conjunto de considerações sobre anticiganismo organizadas em volume pela alemã Roswitha Scholz.
 
Que nos diz ela que valha a pena sublinhar? Que há muito, no fundo desde que nos sedentarizámos e organizámos as nossas sociedades em torno do trabalho e da produção e do consumo, pelo menos desde esses tempos que o estigma sobre o povo cigano foi marcado a ferros. Incivilizados, preguiçosos, marginais, selvagens, fora-da-lei, bandidos, primitivos, bruxos e ladrões, parasitas, batoteiros, cidadãos de segunda e de terceira, párias, porque, na raiz, ameaçavam com o nomadismo os pilares de uma civilização assente na fixação dos povos, na exploração do trabalho, no pagamento de impostos, na submissão e na subserviência e na servidão. Foram objecto tanto de um ódio abjecto e discriminatório, que os arrumou em guetos e exterminou em fornos, como de uma romantização que neles celebra o resquício do selvagem resistente às mordaças do capitalismo. Para alguns, representam tudo quanto adoraríamos ser não fôssemos revolucionários ma non troppo.
 
Começaram a ser perseguidos na transição para a Modernidade, informa Roswitha Scholz, ou seja, quando o trabalho se tornou o símbolo da máxima virtude no mundo civilizado e a preguiça, que já era um pecado capital, se transformou num vício execrável à luz dos civilizados padrões ocidentais. «A partir desse momento opera-se uma etnicização do estereótipo: de ora em diante, os ciganos são vistos como uma raça primitiva.» Associais, «lumpemproletariado avesso ao trabalho», foram perseguidos por leis racistas ainda antes dos judeus na Alemanha nazi. Porajmos é o nome que se dá ao holocausto cigano, ainda hoje menos falado do que a Shoa. Porquê? Talvez por razões de empatia. Talvez por serem humanos como nós, ma non troppo. Será? Serão os índios de cá, talvez. E no entanto foram submetidos a esterilização forçada, classificados como imbecis e incapazes, foram proibidos de casar com pessoas de sangue puro, internados em campos de concentração, deportados, também para eles inventaram reservas especiais: «Até as pessoas com um bisavô considerado cigano eram classificadas mestiças de ciganos.» Logo, eram ciganas. Logo, segregadas, exterminadas.
 
Cito: «Desde 1989, a situação dos roma piorou de forma dramática, nomeadamente nos antigos Estados do bloco de Leste. As expulsões e os progroms estão na ordem do dia, o que provoca movimentos migratórios. No entanto, estas realidades são menos noticiadas na Alemanha do que os pedidos de asilo, alegadamente injustificados, furtos em lojas e crianças a mendigar. De um modo geral é possível detectar desde 1989 um recrudescimento dos estereótipos anticiganistas junto das instituições estatais, dos média, etc.: chamam-lhes criminosos, dizem que mendigam e procriam «que nem coelhos», que são sujos, supersticiosos, primitivos e por aí adiante.» Tantos são os defeitos, que fica difícil perceber as virtudes. Podemos começar, quem sabe, pelos males que não lhes devemos, nem progroms, nem porajmos, nem shoas, nem atómicas, nem mães de todas as bombas, nem aculturações de crucifixo em riste. Já é qualquer coisa, esta mania de não pretender governar para fora mais do que interessa governar para dentro. Talvez pudéssemos começar a revolução por aí, quero dizer: por de uma vez por todas metermos na cabeça e no coração e no estômago e onde mais caiba essa resistência à tentação de pretender impor ao outro o que nós somos e pensamos, permitindo que cada ser se faça e construa na descoberta e no intercâmbio de, mais do que opiniões, exemplos fortalecidos por acções concretas. Sem fascínio nem desprezo, saber dizer liberdade sem esperar que rime mais com igualdade do que rima com fraternidade.

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