segunda-feira, 25 de abril de 2022

25 É EVIDENTE

 


   Alguns pastores da noite percorriam a cidade, em 1974, eram para aí duas e tantas da madrugada já no calendário dobrava o 24. Entre uma conversa e dois copos, regressavam outros a casa, rodando em automóvel de amigos.
   Ali por S. Sebastião da Pedreira repararam na tropa nas ruas, de G-3 aperrada, próximo do Q.G. Um dos tipos que nessa noite estava ainda acordado era este vosso amigo. Ensinaram-lhe — escola antiga? — que o repórter está sempre de serviço. Vai daí, vai de telefonar para O Século.
   No casarão, agora vazio, palácio do Marquês, jornal de Magalhães Lima, o meu amigo Mensurado atende: «Sim, sim. Deve estar qualquer coisa a passar-se. Telefonei para a Televisão e desligaram-me o telefone na cara! Vê se consegues ir lá e ver o que se passa!»
   Pergunto à amiga: «Queres arriscar?» Sabia que nestas coisas de tropa na rua um tipo se arrisca a apanhar um balázio perdido. «Embora!», diz a amiga, arrancando já no utilitário, rumo à Alameda das Linhas de Torres.
   Ruas vazias, nada de soldados. A rampa de acesso à RTP lá estava, íngreme. E depois da curva? «Avança! Seja o que for!», gritava o vosso amigo, saltando do carro em movimento, crachat do Sindicato ao peito e cartão na mão.
   «Imprensa?», pensariam os soldados, «que quer isso dizer?»
   O que eles queriam saber era a senha. Mas o repórter não sabia de senha, nem contra-senha. Mas, virando a outra curva, mais acima, já perto da entrada, vinha a correr um aspirante-miliciano, gritando para a tropa ter calma que o tipo da Imprensa até era conhecido, e amigo de longa data, do repórter e da amiga ao volante.
   Mais tarde, com a nova aurora a romper o 25, António Reis, o tal aspirante-miliciano, ajudava a redigir os primeiros noticiários, a G-3 pousada na secretária. Eram 10 e 33. O repórter fotográfico de O Século é admitido nas instalações da RTP. Primeira fotografia, talvez histórica. O capitão Teófilo Bento, dirigindo-se aos homens do Telejornal ironiza: «Vejam lá se fazem um noticiário diferente!»
   De início confinado à sala de recepção, o repórter, cerca das 5 e 40, pôde telefonar para o seu jornal dizendo onde estava e prometendo notícias para breve. Antes, às 5 e 15, acompanhado pelo aspirante-miliciano António Reis deu a volta ao perímetro para verificar como tudo se encontrava e quais as condições de defesa das instalações da RTP ocupadas pela tropa da Escola Prática de Administração Militar. «Quem diria que viriam a ser os padeiros — como são conhecidos na gíria militar, os elementos da EPAM — a ocupar a Televisão!», exclamava um soldado.
   No meio disto tudo os comunicados do Movimento das Forças armadas iam para ao r, de 15 em 15 minutos, Grândola Vila Morena, do Zeca Afonso, canções do Adriano, do Zé Mário Branco, rompiam o silêncio pesado da espectativa. Às 6 e 15, quando a madrugada rompe, em frente, altas antenas com luzes vermelhas pontuando a claridade rosa e cinzenta, cansaço no rosto de quase todos, pela tensão de muitas horas de expectativa. «Como vai ser o resto do dia?» — perguntavam alguns.
   Os soldados, de capacete de aço na cabeça, e G-3 pronta a disparar, aguardavam ordens e os acontecimentos que viessem a desenrolar-se. Mas a tensão ia-se desfazendo. A certeza da vitória do Movimento parecia ser mais que evidente.
   Agora, seis anos depois, batendo este texto à máquina na redacção do Dafundo, respigando algumas notas retiradas das várias edições que nesse dia O Século fez sair para a rua, o repórter recorda a data, lembra as luminárias da Imprensa, quando mais tarde, já noite, quase a 26, os generais subiam, entre cravos e aplausos, a mesma rampa de acesso aos estúdios da RTP que o repórter subira, em serviço voluntário, para saber o que se passava.
   E agora? Que estamos a 25 de Abril é evidente. E os cravos? E a Grândola Vila Morena? E a alegria, transbordando por ruas e avenidas na libertação? Seja como for escrevo, em caixa alta: 25 DE ABRIL. VIVA A LIBERDADE!
 
Eduardo Guerra Carneiro, O Revólver do Repórter.

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