Voltei a pegar nas “Folhas Caídas”, de Almeida Garrett
(1799-1854), um livro em que não punha a mão para aí há uns 30 anos. A edição
cá de casa, herdada de uma tia, tem introdução do David Mourão-Ferreira e nela
se diz que outro Ferreira, o José Gomes, achava este «um livro único de
obsessão carnal, sem rodeios de complicações madrigalescas, nem mantos de
impostura.» E é verdade verdadinha, ainda que a mim batam mais os versos em que
a natureza se impõe como último reduto contra a impostura. Garrett, que sofreu
na carne vários exílios, talvez não fosse tão pomposo quanto por vezes o
pintam. Afinal, antes de os cargos se estenderem como passadeira aos pés do poeta,
sofreu pelo menos três exílios por razões políticas. Vem a propósito um poema do
Livro Segundo das “Folhas Caídas”, este:
OS EXILADOS
À Senhora Rossi-Cacia*
Eles tristes, das praias do desterro,
Os olhos longos e arrasados de água
Estendem para aqui… Cravado o ferro
Da saudade têm n’alma; e é negra mágoa
A que lhes rala os corações aflitos,
É a maior da vida — são proscritos,
Dor como outra não há, é a dor que os mata!
Dizer eu: «Essa terra é minha… minha,
Que nasci nela, que a servi, a ingrata!
Que lhe dei… dei por ela quanto tinha,
Sangue, vida, saúde, os bens da sorte…
E ela, por galardão, me entrega à morte!»
Morte lenta e cruel — a de Ugolino!
Bem lhes
quiseram dar…
Mas não será assim: sopro divino
De
bondade e nobreza
Não o
pode apagar
Nos corações da gente portuguesa
Esse
rancor de fera
Que em almas negras, negro e vil impera.
Tu, génio
da Harmonia,
Tu solta a voz em que triunfa a glória,
Com que
suspira amor!
Bela de entusiasmo e de fervor,
Ergue-te, ó Rossi, tua voz nos guia:
A tua
voz divina
Hoje um eco imortal deixa na história.
Inda no
mar de Egina
Soa o hino de Alceu;
E atravessaram séculos
Os cantos de Tirteu.
Mais poderosa e válida
A tua voz será;
A tua voz etérea,
Tua voz não morrerá.
Nós no templo da pátria penduramos
Esta c’roa singela
Que de mirto e de rosas entrançamos
Para essa fronte bela:
Aqui, de voto, ficará pendente,
E um culto de saudade
Aqui, perenemente,
Lhe daremos no altar da Liberdade.
* Giovanna Rossi-Caccia (1818-1892), a senhora do
retrato, cantando em um baile de subscrição que se deu em Lisboa em 29 de Março
de 1845 a favor dos que nesse ano estavam emigrados por fugir às perseguições
do Governo. Ugolino foi morto à fome com os filhos.
Almeida Garrett, in “Folhas Caídas”, com introdução de David Mourão-Ferreira, Círculo
de Leitores, 1970 (?), pp. 111-112.
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