terça-feira, 26 de abril de 2022

PEDRO, O GRANDE

 


   O feitio trágico de Pedro-o-Grande, aquela antiga criança de dez anos chicoteada pela orgia sangrenta das tropas de Sofia, anda sempre de par com o seu histrionismo. A sua «Katarinucha», aquela criada Marta que ele fizera imperatriz, é-lhe infiel, e é com um irmão da sua antiga amante Ana Mons, que o czar vem casualmente a descobrir um dia as suas relações adulterinas. Que faz o czar? Tortura ele mesmo o denunciante para conhecer toda a verdade. depois deixa passar alguns dias, gozando as torturas morais da imperatriz, ceia com ela e com o seu amante, o desgraçado Mons, e retira calmo para o quarto. Mons, que é depois preso, é interrogado pelo próprio imperador. Confessa tudo e é decapitado. Então o imperador solicita a sua «Katarinucha» para um passeio, leva-a ao sítio onde está exposto o cadáver do seu amante, desce do carro e convida a imperatriz a descer e a olhar bem o espectáculo. Depois manda meter a cabeça de Mons num recipiente cheio de álcool e coloca-o no quarto de dormir da imperatriz. Esta suporta, sem um queixume ou alarme, tudo isto, até que o imperador acaba por tornar a falar-lhe.
   O histrionismo trágico de Pedro é característico de toda a sua personalidade. Uma das suas mais notáveis criações foi a da sua Inquisição. Esta polícia logo que houvesse rumores de qualquer conspiração prendia denunciante e denunciados, e, no meio das mais fantásticas torturas (de manicómio dantesco), eram obrigados à confissão completa. Conspirações políticas ou religiosas, seitas, feitiçarias, etc., tudo era resolvido por esta nova polícia. As mutilações eram tantas que se via, na Rússia de Pedro, pessoas sem nariz, sem braços, sem orelhas, etc., com o sinal da sua forçada concordância com toda a obra do imperador. O regulamento eclesiástico, que tinha transformado os sacerdotes em funcionários, podia considerar-se como uma segunda forma desta Inquisição. Estes funcionários tinham obrigação de comunicar às autoridades as faltas e os crimes dos seus fiéis, de modo que era um obrigatório serviço de espionagem o que assim competia aos ministros do culto ortodoxo.
   Este misto de dedicação à causa pública e de bárbara cólera e irreprimível violência vê-se na fantástica criação da sua cidade — Petersburgo ou cidade de Pedro. A estátua de Falconet o mostra: um cavalo empinado sobre um abismo, impassível de violência retesada no máximo, feito bronze de força e domínio. A cidade é, para Pedro, a afirmação do resgate da Rússia — a amplidão dos mares conquistada. É um sonho secular feito acção dum homem, vencendo nações, homens e elementos.
   Assim será a cidade de Pedro. Ele a sonha, e, cada dia, um sonho novo vem modificar o sonho anterior. É o desequilíbrio da raça, o caminho dum sonho que se não faz vontade mas obstinação delirante. Plano sobre plano, construção e destruição, sonho-névoa, que se levanta e tomba desfeito na mediocridade da realização, para de novo se erguer mais veemente e mais louco. Em tudo isto só uma coisa não conta — o material humano. Os faraós do Egipto ergueram em pedra milenária o seu medo da morte, o protesto do homem sem Cristo contra uma vida sem ressurreição em eternidade. O chicote dos condutores de escravos foi a batuta dessa bárbara sinfonia, em que os homens perseguidos pela morte, mas ignorantes do amor, se queriam salvar na excepção do seu aristocratismo.
   Petersburgo será erguida sobre emanações de lama e lodo, e sobre os cadáveres de mais de dez mil trabalhadores escravos. É a esta cidade que o imperador chamará «o meu Paraíso», não se lembrando que dez mil almas aí tiveram o Inferno, não sonhando sequer, que, dos seus fundamentos, poderão sair um dia, em pleno século XX, imprecações, que a façam um Inferno de milhares e milhares de russos.

 
 Leonardo Coimbra, in A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre (1935).
 

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