30/5/74
Reatando, após quase três meses: a carcaça ainda aguenta. Mal, com
insónias como agora (preferia estar a sonhar, nos meus sonhos tão divertidos),
mas tem suportado coisas do diabo. Vi o que já desesperava de ver: o Regime de
pantanas, senão no sabugo, palavras, sic!, do Vasco Gonçalves. E vou registar o
que foi o meu
25 DE ABRIL
Estou na cama de manhã e aproveito para apontar na Agenda do tempo que
passa. Tinha ficado na véspera em casa a rever provas. O puto fora para o
liceu. Resolvo ir à rua beber uma cervejola e continuar a revisão. Ao pé do
chafariz, o barbeiro atira com esta: «Então, o Marcello e o Thomaz lá foram ao
ar…» Não percebo logo. Nem acredito como. Mas ele confirma: a Emissora Nacional
não funciona, só o Rádio Clube Português é que dá música e de vez em quando
comunicados breves. Já mais convencido, convido-o logo a festejar na tasca da
Laurentina que era para onde eu ia. E depois, ainda duvidoso, vou com ele à
barbearia a ver se ouço algum comunicado. Música ligeira, sem nada de marcial.
Canções populares portuguesas, pouco mais. (Até a Amália, parece-me!) Mas
passados minutos um comunicado do Comando das Forças Armadas. Aí, adquiro a
certeza que é, deverá ser a repetição do golpe das Caldas, mas com outra
amplitude. Refere que o público tem acorrido às lojas, em tentativas de
açambarcamento, e manda fechar o comércio. Aconselha a população a manter-se
nas suas casas e as forças militares e militarizadas a recolherem aos quartéis
e não oferecerem resistência à tropa. A coisa é grave. Parece que não há
comboios e para lá de Sete Rios não se passa. Tenho algum dinheiro e resolvo
logo ir ver (foi o melhor que fiz: ver para crer). Desço acelerado e vou a casa
do Fernando Passos, perguntar se ele sabe alguma coisa. Se sabe não diz. Mas
confirma. Acompanho-o à farmácia de Queluz Ocidental e depois (ele aconselha-me
que não vá a Lisboa, pois não conseguirei passar — mas eu conheço outro sítio
para entrar, ou sair, da minha terra e caminho acelerado. Muitos carros, em
fuga discreta?) para cá. Em Queluz, já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa
e uma data de tontos a abastecerem-se para o ano todo… oiço que um tal comprou
mais de cem pães. Rica açorda (ou negócio) deve ter feito com eles. Cafés
fechados. Há comboios. Meto-me num para a Amadora, depois sigo a pé. No Bairro
do Bosque (sempre o intenso movimento de carros a saírem), ainda consigo meter
um copo. Não há jornais. Rostos, com as janelas fechadas, assomam entre
cortinas. Tudo me dá a ideia de receio (mas em Queluz vi alguns magalas a
planar, o que me deixou intrigado). Venho a pé até às portas de Benfica e o
ambiente é o mesmo: fila de carros a safarem-se, comércio encerrado, mulheres
com sacos de plástico cheios, tensão. Meto-me num autocarro da Carris, de
Benfica para o Chile e fico-me um tanto a rir do Passos, que em Lisboa e a
andar para o centro lá eu vou. No Chile, só uma taberna aberta: bebo mais um
copo, estou nas lonas. Animação. Um tipo ao meu lado compra oito maços de
Português Suave, também está a açambarcar ou a fumar aquilo diariamente
arrisca-se a um cancro nos pulmões em beleza e rápido. Aparece gente com
jornais (A Capital) e sei que estão a vender para os lados do Império. Vou logo
lá, sento-me num degrau e sei as primeiras notícias. Tá bem! Resolvo ir a casa
do Henrique, ver se ele estará. Na Carlos Mardel, uma senhora num 1.º andar
pergunta-me onde vendem jornais. Digo-lhe e ofereço-lhe o meu. O marido, que
vinha à rua, fica com ele e eu fico reduzido a 30$00. Começo com sede e
angústias. Estou em jejum e já andei um bom bocado. Penso ainda ir ao Manaças
(António) mas desde a última vez, desde a nossa última conversa, ele não me
está a apetecer. E depois, o importante deve estar a acontecer na Baixa. Enfio
ao Montecarlo ( fechadíssimo) mas consigo topar um tipo a bater à porta da
Mourisca (também fechada) e entrar. É que há gente. Vou, bato, o Costa Loiro
está a forrar vidros por dentro com papel, talvez com receio de algum obus.
Peço-lhe vintes e ele despacha-me. Meto à Rua Viriato e vou até ao quartel de
Santa Marta (todas as tascas fechadas até ali). Dá-me vontade de rir ver os
cabeças de nabo reunidos lá dentro, a falarem uns com os outros ( é que
obedeceram às ordens?). Mas logo ao lado há uma tasca restaurante, porta meio
aberta, com gente e muito movimento (guardas a beber, outro a telefonar para
casa e sossegar a mulher (?), diz que não há azar). Bebo uma Sagres e como uma
sandes. E avanço para a linha de fogo, que não sei onde é. Metros andados,
ouvem-se ao longe tiros e rajadas de metralhadora. Tipos que fogem. Mas onde
será o tiroteio? Como a coisa parou, continuo a andar.. Até que encontro, já
não sei onde, o Almeida Santos e um tipo que é revisor no Diário de Lisboa ou
Popular, já não sei. Metemo-nos num táxi que sobe pela Calçada do Carmo. Mas
logo populares avisam (ah, entretanto, perto do Tivoli, já tinha comprado um
Diário de Notícias, com mais informes) que a rua está bloqueada. O carro faz
marcha-atrás e mete (por onde?) para o Bairro Alto. Bebemos não sei o quê numa
tasca, o revisor vai à vida, o Almeida Santos pira-se e eu avanço para o largo do
Carmo. Na Rua da Misericórdia, muita gente, tropa e um tanque de respeito. Na
janela da Redacção do República, o Vítor Direito e o Afonso Praça (aquele
grita-me: «estás muito bonito hoje!», eu levava o sujíssimo albornoz que me deu
o Artur), noutra varanda o Álvaro Belo Marques, a quem pergunto: «como é que se
entra para aí?», porque a porta da escada do República está fechada. «Vai pelas
traseiras!» Vou mas também está fechada e logo à esquina aparece um vendedor
com a última do República. É um verdadeiro assalto. Aí fico a saber dos chefes
(Costa Gomes e Spínola) e o alvoroço é enorme. Já não sei bem: se vim ao
Rossio, se de repente notei uma grande correria para o Terreiro do Paço. Sem
perceber nada do que se passa, sigo a onda. No Terreiro do Paço, começa a
chover. Há correrias e encontro uma rapariga que me conhece muito bem mas não
topo logo. É a Maria João, a engenheira química, amiga do Henrique, com outro
rapaz. Ficámos abrigados da chuva debaixo das arcadas, depois convenço-os a
irem beber um copo ao Terreiro do Trigo (Campo das Cebolas?), não sei já se
estava aberto se não. Ela tem o carro no Camões e para aí vamos. Mas o Chiado
está cheio de gente, que quer assaltar a Pide. Já não sei se ouvi tiros. Vi
ainda as (uma?) ambulâncias, depois quase à porta da Brasileira um rapaz ou
homem com a mão cheia de sangue (seco?), que tinha agarrado num rapaz ou
rapariga. Começam a chegar fuzileiros, há mais correrias, a Maria João e o
rapaz perderam-se de mim. Cheira-me que já chega. Agarro num táxi e arranco
para casa dação. Pela TV vi depois o resto. Foi bonito e foi rápido. Já posso
morrer mais descansadinho.
Luiz Pacheco, Diário Remendado.
Sem comentários:
Enviar um comentário