E vão três rapazinhos. Depois de Jean-Pierre
Cargol (o menino selvagem) e de Brandon deWilde (aprendiz de pistoleiro),
eis-me a braços com Huw, o mais novo da família Morgan em “O Vale Era Verde”
(1941). Roddy McDowall, fui ver, teve uma longa e interessante carreira. É ele
quem narra a história do filme com que John Ford (1894-1973) amealhou o
terceiro Oscar pela melhor realização. Uma confissão para ser lapidado: embirro
com o cinema de Ford. No entanto, tenho para aqui filmes assinados por ele que
nunca mais acaba. Sobretudo westerns. O que me chateia é o moralismo conservador,
adoçado com cenas cómicas por personagens picarescas, geralmente bêbados, directamente
empenhadas em atrair e cativar o interesse do público. Raros são os rasgos de
provocação que inquietam e instigam a dúvida, parecendo tudo demasiado
desbravado, técnica e meticulosamente realizado, para nos levar a pensar de uma
maneira que era a dele. A excepção talvez seja “O Homem que Matou Liberty
Valance” (1962), mas lá iremos, Por ora, interessa-me sublinhar em “O Vale Era
Verde” as dificuldades de uma família de mineiros no País de Gales. Jorge Silva
Melo tem um texto bonito sobre este filme, fala da mina como um «ventre
infernal do capitalismo», do «valor do trabalho», e chama-lhe «filme ideológico»:
«É este o filme que mais claramente me ensinou — este é um filme que ensina,
será pecado? — que é mais fácil “um camelo atravessar o buraco da agulha do que
a um rico entrar no Reino dos Céus”.» Curiosamente, onde Silva Melo viu um
ensinamento eu vejo uma espécie de propaganda da vida simples, do pobrezinho
bom, dos valores tradicionais da família, dessas coisas que sempre me
irritaram. Se gosto muito deste filme não é definitivamente por esse papel que
ele também cumpre. É por duas personagens que, em certa medida, são marginais
nesse território, embora se imponham enquanto pilares éticos e axiológicos no
seio da comunidade retratada. Mr. Gruffydd (Walter Pidgeon) é uma delas, Mr.
Parry (Arthur Shields) é a outra. No primeiro encontramos o clássico dilema do
pastor dividido entre a fé e o amor (ainda por cima pela belíssima Maureen O’Hara),
no segundo damos com um diácono do pior que pode haver. Mulheres e comunistas
são, para este, uma praga de Deus. Tem aquela mania que agora está muito em
voga de carregar um ponto final em cada sentença proferida, acrescentando-lhe
que o resto para além do que ele pensa e julga nada vale nem sequer deve ser
considerado. Teria sucesso nos dias correntes. Ao pastor talvez não restassem
tantos conflitos. Gosto dele pelo lado romântico que sempre me inspira
comiseração, ao mesmo tempo que me suscita impiedade. É uma coisa muito minha.
Acho que nem censuradores nem gente ambígua, a roçar uma hipocrisia acolhida
com ligeireza, devem merecer a nossa complacência. Há uma cena em que Ford
coloca o pastor a falar com a amada olhando para o céu, fazendo a meio da
conversa um pequeno desvio na direcção do rosto da jovem Angharad. Pois esse é
o preciso instante em que me dão ganas de o mandar para o Inferno. Vocês nem
imaginam. Se pudesse, entrava no filme, agarrava-lhe na cabeça, e obrigava-o a
dizer novamente tudo o que disse olhando a rapariga nos olhos.
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