É difícil de entender se o entusiasmo com que assistimos a “Um Filme em Forma de Assim” (2022) tem mais que ver com o filme em si ou com o sentimento de respeito inspirado pela obra de Alexandre O’Neill (1924-1986). Depois de nos últimos anos se ter dedicado a abordar cinematograficamente algumas das mais relevantes obras da literatura portuguesa — “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (2020), “Peregrinação” (2017), “Os Maias: Cenas da Vida Romântica” (2014), “Filme do Desassossego” (2010) —, não era de todo imprevisível que João Botelho (n. 1949) penetrasse no universo de O’Neill. Afinal é o autor de “Um Adeus Português” (1986), filme que pediu de empréstimo o título ao mais belo poema de amor alguma vez escrito em língua portuguesa. E é precisamente com versos desse poema que “Um Filme em Forma de Assim” remata o périplo o’neilliano, traçado por um argumento escrito a meias com a biógrafa e ensaísta Maria Antónia Oliveira. O ponto de partida parece ter sido o “Auto-retrato” incluído em “Poemas com Endereço” (1962), mas há qualquer coisa anterior a esses versos que tece a malha poética da película. É o plano que nos mostra a Lisboa remanchada reconstruída em estúdio, rizoma de uma obra heteróclita que atravessou géneros e formas sempre com o mesmo pano de fundo. Lá estão os cafés e as noitadas, o povo anónimo das ruas, os velhos de “A Saca de Orelhas” (1979) e os desenquadros de uma existência quotidiana registada com sentido de humor invulgar porque dentro do riso nele patente repousa uma tristeza latente. E estão também episódios conhecidos da vida doméstica, a crónica falta de dinheiro, a loja de penhores, o pai e as mulheres, sempre as mulheres. Nisso, o filme completa-se recriando mais o universo literário do que obedecendo a quaisquer normas de género. Não é um filme biográfico, estando por lá a biografia, não é um filme de sketches, construindo-se de ligações entre crónicas várias, é um filme poético porque nele respiram os versos e a música própria que os anima. Neste sentido, impõe-se um sublinhado à música de Daniel Bernardes. Se alguma coisa de concreto este filme é, então chame-se-lhe musical. Musical como um poema o é também, tingido de jazz e de música erudita, canto lírico e até, imagine-se, um condimento de techno lá mais para o final, numa cena capaz de causar desconforto a quem viva obcecado com a lógica das coisas. Impressiona, portanto, o ritmo, a construção da sinfonia com as cenas ligando-se umas às outras em sequências desenhadas em torno das palavras do poeta que assim orou: «Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja, / que o absurdo, mesmo em curtas doses, / defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!» Foi nisto que pensei no final: quanto de melancolia não haverá naquela Lisboa remanchada, tão aparentemente ligeira, tão risível no comezinho e pícara, se assim podemos dizê-lo, nos hábitos e nos costumes? Será a de hoje, com o turismo e a gentrificação, diferente daquela? Não sei que não lá moro, mas apercebo-me, sempre que por lá ando, de uma debandada para a periferia que tem deixado o centro entregue aos aromas e aos paladares estrangeiros. Como se a cidade no geral, os bairros dentro dela em particular, se tivesse transformado num não-lugar. Talvez por isso, ou por não o haver entendido, só não gostei do plano final, aquela mão cheia de fatalismo ondulante a vir na minha direcção como uma coisa em forma de assim. Quanto ao mais foi um mimo, concerto de poesia em movimento.
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