Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos estava desenvolvida, com seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um pouco assustado. Comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a memória ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tecnologia pesada, concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha que cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam o seu poder e submetem a natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita, bauxita ou ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos, olham aquela montanha e vêem humor da montanha e vêem se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem cerimónia para a montanha, cantam para ela, cantam para o rio... mas o cientista olha para o rio e calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo uma hidrelétrica, uma barragem.
Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali não tem música, a montanha não tem humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura, essa mesma tradição, que transforma a natureza em coisa, ele transforma os eventos em datas, tem antes e depois. Data tudo, tem velho e tem novo. Velho geralmente é algo que você joga fora, descarta, o novo é algo que você explora, usa. Não há reverência, não existe o sentido das coisas sagradas. Eu fiquei com medo, Eu fiquei pensando: e agora?
Ailton Krenak, in Antes o Mundo não Existia, copiado da revista Flauta de Luz, n.º 9, Junho de 2022, pp. 116-117.
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