quinta-feira, 7 de julho de 2022

A NORTE DO CALENDÁRIO

 

   Não é difícil imaginar quais possam ter sido as inquietações primitivas do pensamento, sendo que entre elas encontraremos inevitavelmente o lugar do homem na natureza. Concepções míticas distintas semearam teses diferentes como forma de solucionar o problema, colocando o ser humano ora num lugar intrínseco ao mundo natural, ora deslocando-o para um plano extrínseco que, a dado momento, fundou uma divisão aparentemente insanável que acabaria por estar na origem disto a que chamamos civilização ocidental: ide e exercei poder sobre as outras criaturas à superfície da Terra, no fundo dos mares e nos céus visíveis a olho nu, fazei por dominar a Natureza e o que dela dentro de vós exerce poder através dos instintos. Livrai-vos do animal que há em vós, sacrificando-o.
   Muitos séculos passados sobre esses primeiros textos que eram escritos em verso podemos hoje interrogar-nos: o espanto ainda vive em nós? Da poesia que vamos lendo, aqui e acolá encontramos um pendor bucolista que não desagrada de todo, além certo humor com que a pós-modernidade resolveu o niilismo, muito lirismo urbano-depressivo e renda de bilros a rodos. O poema reflexivo escasseia, até porque já tudo foi dito e pensado. Para quê perder tempo a recortar metáforas que exijam pensamento tanto quanto nos oferecem leituras possíveis de um mundo em acelerada decomposição?
   Sobre isto das metáforas talvez seja proveitoso lembrar como em tempos o conhecimento não prescindia delas, expressando por imagens o que sem o recurso à metáfora não era exprimível. A aventura surrealista explorou ao limite da saturação tais processos, levando a que até das metáforas se tenham tornado inimigos os poetas. O resultado é uma metapoesia fastidiosa, fechada em si mesma, entregue a pensar-se como se não houvesse mais mundo para lá do poema e da sua problemática existencial. Nunca como hoje se escreveu tanto poema com a própria palavra poema enquanto núcleo central do texto e a produção desse animal domesticado, a poesia, como tema central. Anda cheia de problemas existenciais, a poesia.
   A vantagem de um livro como A Norte do Calendário (Medula, Março de 2022), se outras não tiver, é a de nos agarrar logo por escapar a tais tendências e inclinações, preferindo concentrar-se em versos que fazem pensar sobre que lugar ocupa ainda a natureza em nós (assim mesmo), o que sobra de selvagem nestes corpos domesticados pela civilização até ao atrofio, escravos de tecnologias estupidificantes com que rasuramos das nossas vidas o conhecimento da terra e o usufruto imanente do território: «Não há / ciência que explique a necessidade / de uma genuflexão perante uma horta / cuidada, um jardim regado, / um caixote de morangos / ou de azeitonas acabadas de roubar, // como não há resposta ao mistério / do fogo-fátuo sem a presença de corpos / em decomposição, ou ao porquê de tanto / ódio a gente preguiçosa, posto que pouco / ou nada fizeram» (pp. 25-26).
   O que resta dos jardineiros de mitos antigos, dessas visões metafóricas do mundo, no pensamento lavrado pela linguagem? Pela poesia de Filipe Homem Fonseca (n. 1974) passa esse sentimento de inquietação face ao mundo moderno e seu propalado progresso, a velha ramificação campo/cidade que não somos capazes de ultrapassar, uma crítica muito perspicaz às sociedades que vampirizam cidadãos através do trabalho, gerando e alimentando dependências que os tornem tão competitivos quão escravos de uma avidez suicidária. À velha dicotomia ser/ter ele acrescenta o problema do estar/ser, ironizando subtilmente a contemporaneidade, tanto quanto se permite deslumbrar com a ancestralidade. Leia-se atentamente o belíssimo poema dedicado à avó (pp. 18-19), como outros em que «a eternidade / tem a duração de um capricho» (p. 24).
   Ganham muito estes poemas se lidos em voz alta, lenta e pausadamente, desfrutando por inteiro do labirinto de sentidos e significados sugeridos pela musicalidade, pelas metáforas cuidadosamente urdidas com um sentido de humor muito peculiar: «(…) Finto a madrugada. / Descerro cortinas e largo a rede / no mais profundo de todos / os abismos sonhados por crianças / mancas e um Saturno pubescente. / Devagar se foram conquistando / as cidades de prata e fel, / cantadas por jograis vestidos / de sombras aquáticas, refrações / empedernidas e cores sem nome. // Ergo a mão esquerda, exibo / linhas da vida e do amor — / e da sorte que é tê-las em par —, / mastigo gerberas / e peço o livro de reclamações. / Há um coreto de pedra e ferro / enferrujado onde gostaria / de terminar os meus dias. / Não tenho qualquer interesse / em impedir uma inundação. / Se me deixarem, correrei / até ter sol e sombra atrás / de mim, o paradoxo de toda a / Criação, sem pano para mangas. // Antes de ser silêncio, o silêncio / era peso. Depois, calou-se. (…)» (pp. 28-29) Deste livro foram feitos apenas 100 exemplares, pelo que não sei se ainda existirão alguns disponíveis. Que bela surpresa tê-lo lido.

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