No passado dia 28 de Junho partilhei no Facebook um desses vídeos virais
que pululam na internet. Consistia o dito num curto diálogo entre um repórter
da CMTV e um escultor chamado Custódio Almeida, autor de uma escultura
intitulada “Foda dos nus” que estaria a causar grande polémica em Santa Cruz da
Trapa. Na verdade, não havia polémica nenhuma. Falar em polémica foi o modo
encontrado pelo jornalista para atrair atenções sobre a sua peça, rapidamente
transformada num involuntário momento de comédia. O conteúdo hilariante do
vídeo devia-se mais às perguntas elaboradas pelo jornalista do que às respostas
desarticuladas do escultor, ao qual, se me é permitida a opinião, caberá mais
saber esculpir do que articular discursos sobre aquilo que esculpe. Assim deveria
ser, não vivêssemos num tempo de tagarelas e vendedores de banha da cobra, cuja
valoração e validação de um trabalho artístico está mais dependente da tanga
que o artista conseguir vender sobre a sua obra do que da obra ela mesma. No
comércio chamam-lhe argumentos de venda.
Olhando para a escultura em si, o que vemos poderá e deverá suscitar comentários díspares, em função dos critérios de gosto de cada um e a base de sustentação crítica que tiver, se ainda restar alguma. Não é a primeira vez que Custódio Almeida aparece na televisão. Já antes aparecera numa reportagem emotiva, a qual destacava o passado difícil do escultor e a entrega absoluta à criação. O seu portefólio, parcialmente disponível para consulta online, revela uma dedicação comovente, havendo nele algo de arte bruta que muito me interessa e respeito profundamente, mais do que tanto tacho e panela que o público adora calçar sob a forma de sandália. O mesmo público que, comovidíssimo com a morte de Paula Rego (1935-2022), partilha inúmeras publicações de pesar, para passados poucos dias praticamente ignorar o desaparecimento de outro dos seus grandes artistas da mesma geração: Sérgio Pombo (1947-2022).
Olhando para a escultura em si, o que vemos poderá e deverá suscitar comentários díspares, em função dos critérios de gosto de cada um e a base de sustentação crítica que tiver, se ainda restar alguma. Não é a primeira vez que Custódio Almeida aparece na televisão. Já antes aparecera numa reportagem emotiva, a qual destacava o passado difícil do escultor e a entrega absoluta à criação. O seu portefólio, parcialmente disponível para consulta online, revela uma dedicação comovente, havendo nele algo de arte bruta que muito me interessa e respeito profundamente, mais do que tanto tacho e panela que o público adora calçar sob a forma de sandália. O mesmo público que, comovidíssimo com a morte de Paula Rego (1935-2022), partilha inúmeras publicações de pesar, para passados poucos dias praticamente ignorar o desaparecimento de outro dos seus grandes artistas da mesma geração: Sérgio Pombo (1947-2022).
O que tem a obra de Rego que a de Pombo não tem? A primeira gozou do marketing exercido sobre o seu trabalho, não passando sequer despercebido a todas as televisões portuguesas o aparecimento de um conhecido e apalermado treinador de futebol numa das suas exposições, o segundo gozou apenas de discrição. Em “A arte Portuguesa do Século XX” (Círculo de Leitores, Dezembro de 1998), Rui Mário Gonçalves dedicou-lhe quatro linhas: «Sérgio Pombo fundiu a representação de fragmentos do corpo humano vertical com a verticalidade da tela-objecto, de modo intensamente expressionista, realizando picturalmente o que outrora fizera objectualmente» (p. 149). Já Bernardo Pinto de Almeida, em “Pintura Portuguesa no Século XX” (Lello Editores, 2.ª edição, Dezembro de 1996), foi ligeiramente mais generoso. Depois de referir a sua passagem pelo grupo “5+1”, regista que «Sérgio Pombo tem praticado uma pintura situada para lá da dialéctica abstracção/figuração, na proposta de sínteses de “objectos pictóricos”, que nomeadamente flutuam pela superfície do quadro, gerando tensões entre o plano dos objectos e o vazio, em que se organiza muitas vezes o seu espaço pictural. / Uma pintura de presença algo inquietante no seu domínio de situações plásticas, em certo equilíbrio, ainda conotáveis com uma imagética neo-pop» (pp. 181-182). Se não perceberam, tivessem percebido.
Ressalve-se a relevância de um artista e o modo como o público manifestou, pela ausência de reacções, desconhecimento sobre o seu trabalho, desde logo e talvez sobretudo porque acerca de Sérgio Pombo nunca ouvimos numa SIC, nem nunca encontrámos numa página do Expresso, nenhuma notícia do tipo: “Quadro de Sérgio Pombo bate recordes em Londres”. O público adora estas coisas e deixa-se levar como rolha de cortiça pelas marés.
O que também já teve mais valor neste domínio foi o escândalo, o escândalo que leva à censura e a reacções sobre a censura exercida. Caso contrário, o que dizer do desinteresse perante o que acaba de acontecer na Documenta 15, uma das maiores exposições de arte contemporânea internacional, realizada em Kassel, na Alemanha, com um mural do colectivo indonésio Taring Padi, intitulado “People’s Justice” (2002), a ser censurado, sob acusação de anti-semitismo, levando inclusive à demissão da directora da mostra? Quem quer saber? Quem se manifesta? Quem ainda está empenhado, neste mundo de voluntária exposição da privacidade e caucionada hipervigilância, em combater estas subtis formas de censura? Quando num parlamento dos baluartes da democracia no mundo a censura é legitimada, sob pretextos que ainda estão e provavelmente estarão sempre por esclarecer, depois de uma pandemia que encafuou milhões de cidadãos em casa como carneiros num curral, transformando cada um de nós num vigilante do vizinho, o que esperar ainda de espírito crítico e da defesa da liberdade de pensamento e de expressão?
Sobre a Documenta, já gora, lembra Gianfranco Sanguinetti: «A “Documenta” de Kassel atira directamente para o lixo o excesso de obras de arte que não têm lugar nos depósitos». Vem na página 27 de “O Logro da Arte Contemporânea” (Barco Bêbado, Março de 2022), posfácio de um panfleto de Pablo Echaurren acerca do estado a que a arte se submeteu na governança dos mercados. De leitura obrigatória, o texto de Sanguinetti traça um diagnóstico impiedoso da mercantilização contemporânea de uma arte que esvazia de sentido a própria palavra arte. A incapacidade para se opor a essa mercantilização, a resignação e a renúncia de um papel participativo na transformação do mundo, no espicaçar do espírito crítico, na provocação de situações de pensamento, reflexão, debate, arrumou o objecto artístico onde se arrumam os outros objectos, ou seja, nas prateleiras de hipermercados luxuosos que têm por horizonte o mercado e por fim único o lucro monetário.
Temos, destarte, uma criação artística separada e ausentada do mundo, isolada em ilhas e resorts com condomínio fechado. Não se trata de fazer a apologia do artista miserável que carrega os males do mundo, mas antes do artista que por não suportar as misérias do mundo se lhe opõe, o contraria destemidamente, assumindo um papel activo e participante na sua mudança, tornando-se inútil a esse mercado reprodutor de entulho a que hoje se dá o nome de arte. Sobre o artista de hoje: «Ele é indiferente, mudo, acrítico, pois sabe que está sob vigilância e teme que a sua voz se desvie do pensamento único, do novo fundamentalismo ideológico que, em tempos de despostismo, não admite crítica nem heresia» (p. 19).
Se não simpatizo nada com essas visões que opõem um antigamente utópico a um hoje distópico, pressentindo a certa altura que para tal o texto de Sanguinetti poderia descambar (vide o ponto sobre “Liberalização da arte”), a verdade é que ele salva a reflexão desse abismo enumerando excepções, que sempre as há. Ora, falando de um modo geral, como nestas coisas tem de ser, o diagnóstico é não apenas impiedoso como absolutamente verdadeiro. O nível de prostituição a que o artista se submete por estes dias, tornando-se «num «trabalhador do conceito»», leva-nos a concordar com o Autor sublinhando a dois traços a defesa de «uma arte intrinsecamente associada à vida das pessoas» (p. 34). Os exemplos supracitados são, assim o espero, suficientemente esclarecedores da indigência crítica a que nos expomos, tantas vezes cúmplices de um sistema que vai paulatinamente transformando tudo em objecto, produto, até que nada sobre de verdadeiramente instigador e libertador.
1 comentário:
Muito bem
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