domingo, 10 de julho de 2022

SEMPRE À FRENTE

 
Niccolò Machiavelli (1469-1527): afortunado autor de comédias, filósofo proscrito. Vem a propósito lembrar que a sua leitura esteve vedada em Portugal desde que foi incluído no Índice dos Livros Proibidos da Igreja Católica até, pasme-se, 1929. Decerto que era lido às escondidas numa das inúmeras reedições que foram circulando de mão em mão por essa Europa fora. Entre os seus mais enérgicos críticos portugueses, a medalha de ouro vai para o Bispo de Silves D. Jerónimo Osório (1506-1580). Estávamos em cima do acontecimento e a filosofia de Maquiavel agitava os pilares da Igreja, ainda que o Bispo de Silves tenha sido acusado de haver censurado Maquiavel sem nunca o haver lido. Curioso documento é o da justificação para a expulsão dos jesuítas em Portugal, já do reinado de D. José I, em 1759, em que a Companhia de Jesus vem aí apresentada como herdeira «das mais perniciosas maquinaçoens, que inventou a malícia dos Homens; e que depois de muitos outros Filosofos impios, e temerarios; divulgou o infame Nicolao Machavello, para perturbação da sociedade Civil, e da Religião Christãa». A Francisco Bernardo Holbeche devemos uma primeira tentativa de tradução de “O Príncipe”, depois de obter em 1757 licença para ler os livros proibidos, embora com excepção das obras de Maquiavel e o “Adónis” de Giambattista Marino (1569-1625). Ficou-se pelo terceiro capítulo, com comentários pertinentes. Só em 1935 teremos uma versão portuguesa integral dessa obra maior do Renascimento italiano, por cá editada com prelúdio de Mussolini. Dito isto, quem assistir à “Mandrágora” encenada por Fernando Mora Ramos, não deixará se de espantar com o facto de essa mesma peça ter sido exibida com sucesso na corte do papa e de em 1787, sendo Florença governada pelo grão-duque Leopoldo, terem erigido a Machiavelli um túmulo de mármore na igreja de Santa-Croce, junto a monumentos dedicados a Michelangelo, Galileu, Dante... Portugal, um país sempre à frente. Acrescente-se este excerto de "Erros Impios, e Sediciosos, que os Religiosos da Companhia de Jesus ensinarão aos Reos, que forão justiçados, e pertenderão espalhar nos Póvos destes Reynos":
 
«Foi outra maquinação ideada pelos Filosofos mais impios, e da sua abominavel tradição dirivada para a divulgar pelo mesmo anathematizado, e proscripto Nicolao Machevello: Que a utilidade do interesse proprio podia ser motivo para se maquinar, e executar a morte alheya. De sorte que aquelle Coriféo, e Heresiarca de toda a impiedade politica, depois de haver arruinado a vida Civil, que se anima de honra, com a Doutrina das calumnias; passou a sacraficar tambem á conveniencia, não só a vida natural; mas tambem a eterna, expondo-as ás funéstas contingencias, que são isseparaveis das mortes insidiosas, e como taes não prevenidas pelos miseraveis, que as padecem, quando menos as podem esperar: Dando por isso este abominavel erro, outro justissimo motivo á indespensavel prohibição, com que a Sede Apostica defendeo as obras do dito Machavello.»
 
Enfim, era lá com eles.
 
Informações recolhidas em Maquiavel e Portugal (Estudos de História das Ideias Políticas), de Martim de Albuquerque, Alêtheia Editores, Novembro de 2007.

Sem comentários: