sábado, 17 de setembro de 2022

FESTAS GALANTES

 

   E se fosse hoje? É uma questão que me coloco cada vez mais frequentemente, sobretudo ao lidar com todo o tipo de licenciosidade literária e artística produzida ao longo de vários séculos de exercício da liberdade de expressão. Exercício que, nalguns casos e em múltiplas circunstâncias, levou à morte executada, quando não lenta e tortuosa, por silenciamento infligido e exclusão imposta. O último Eixo do Mal terminou com um apontamento humorístico, disse o apresentador, e salvo erro, recortado de uma série dos anos de 1990. Parece ter sido há séculos. Pai e filho indianos falavam da monarquia inglesa, com o pai a explicar ao filho porque é que a família real era indiana. Excepto Carlos, que com aquelas orelhas só podia ser africano. “Se fosse hoje”, comentou alguém com aquele tipo de sorriso que não disfarça a angústia implícita no comentário. Também eu me angustio amiudadamente quando pergunto: e se fosse hoje?
   O riso, disse-o Baudelaire, é satânico, ameaça as estruturas do poder. Mas não é apenas o riso, o problema não me parece exclusivo da comédia nem das suas variantes humorísticas. Também no trágico a gente encontra esses trechos que nos levam a pensar no que seria de tais discursos à luz de paradigmas actuais de avaliação de uma obra de arte, seja porque logo imaginamos acusações de misoginia aqui, falta de respeito pelo culto religioso acolá, atentado às minorias além, apropriação cultural aquém, heresia, heresia, etc e tal. “Uma pessoa hoje até tem medo de falar”, sussurra-me o lado demoníaco ao ouvido. As redes sociais, com seus pelourinhos e parabolanos, lá vão exercendo juízos e tecendo sentenças de julgamentos sumários, por vezes com consequências trágicas. Pior quando entramos no domínio do discurso oficial e das leis que nos regem, assistindo a estúpidas censuras ideológicas e imbecis banimentos de obras acusadas de promoverem racismo ou outra qualquer forma de desigualdade. A higienização tem muitas vias, por vezes tão ínvias e perniciosas que nem damos por elas.
   O tempo em que a poesia chocava parece ter sido ultrapassado por um tempo em que a poesia embasbaca, sendo já estreitos e praticamente irrelevantes os poucos episódios de agitação moral que a lírica actual estimula. Escreve-se para se ser lido em soirée sem perturbar o conforto de quem escuta. É por isso que ao ler as “Festas Galantes” (Guerra & Paz, Março de 2022) de Paul Verlaine (1844-1896), um dos tais que morreu na miséria, um sorriso malévolo se nos forma no rosto, o sorriso de quem sabe serem já poucos aqueles que se aperceberão de quanto nesses poemas originalmente publicados em 1869 havia já de desassombro num autor ainda longe do homoerotismo explícito de “Hombres” (1891). Ao terceiro livro, as festas eram a do galanteio entre homens e mulheres, jogos de sedução recriados por interpostas personagens da commedia dell’arte, uma “trupe de otários” a cantar o amor ao luar, disfarçados de Pierrot, Clitandre, Arlequim e Colombina…
   Aqui o retrato da donzela maquilhada que desce a alameda pavoneando-se, acolá um passeio no parque com amantes a meterem as mãos onde não deviam: «Hábeis farsantes e belas coquetes, / Cheios de amor, mas das juras libertos, / Com doce lábia cavaqueamos, / E se mãos se insinuam nas amantes // Como quem não quer respondem por vezes / Com uma bofetada que trocamos / Por um beijo na ponta da falange / Do dedo mindinho, e uma vez que a coisa // Já está a passar de todas as marcas, / Castigam-nos com um olhar severo, / Que, de resto, contrasta com o amuo / Clemente que a boca faz com esmero» (p. 35). Hoje seria caso de assédio e o poema talvez não tivesse piada por, lá está, condescender com o infractor e tolerar a infracção. Mais grave, porém, é o “Cortejo” da donzela rodeada por um macaco e «um pretinho corado»: «Por vezes o preto levanta / Mais do que deve, o diabrete, / O rico fardo, vendo assim / Aquilo com que à noite sonha» (p. 47). Racismo? Exclua-se a obra do Plano Nacional de Leitura.
   Isto que aqui se diz em tom jocoso e porventura cínico é mais grave do que aparenta, tem que ver com a disponibilidade existente para redescobrir o passado à luz do que ele foi e não à luz do que é o presente. Há muito extintos, os banquetes substituíram o vinho na mesa por água mineral. Perdeu-se em verdade, ganhou-se em sobriedade. Haverá verdade na sobriedade? Duvido. A rectidão moralizante das narrativas vigentes chocam, portanto, com essa literatura que ousava mostrar-nos tal qual somos, não muito anatomicamente diferentes dos porcos, mais símios do que à partida nos julgamos. Quando o algoritmo censura a Vénus de Willendorf ou, como a mim já aconteceu, poemas de Antonin Artaud ou Katerina Gogou, são décadas, séculos, de progresso mental que acabam por ser postos em causa por uma máquina de padronização que, estupidificando, cristalizando, coloca de facto marcha atrás no pensamento crítico, atirando-nos para um fosso de literalidade que nos transformará cada vez mais em robots incapazes de rir de si mesmos, hipócritas e mesquinhos.
   Terminemos com um fauno de terracota, o mais curto poema desta colectânea de Paul Verlaine, belíssimo livro com as ilustrações em estilo déco de George Barbier (1882-1932) e tradução competente de João Moita:
 
O FAUNO
 
Um velho fauno de terracota
Pôs-se a rir por entre os canteiros,
Pressagia decerto o triste
Fim desses instantes serenos
 
Que nos conduziram aos dois,
Melancólicos peregrinos,
A esta hora cuja coda
Volteja ao som dos tamborins.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tantos anos de censura, para acabarmos nisto: analfabetos, sujeitos a uma novilíngua de cão amedrontado.