sexta-feira, 16 de setembro de 2022

SANTINHA

 
Assaltam-me por vezes memórias estranhíssimas, talvez motivadas por associações livres entre a percepção do presente e o modo como organizamos o passado dentro de nós. O rei irritado com os dedos borrados de tinta enviou-me para uma visita algures, não me lembro onde, a uma capela ou igreja ou catedral onde os restos mortais de uma santinha permaneciam, passados séculos, com os cabelos intactos. Eu ia pela mão de minha mãe, espreitámos o cadáver e seguimos. Dizia-se também que a santinha chorava incessantemente, exibindo lágrimas reluzentes no rosto, e vertia pingos de sangue no lugar das chagas de Cristo. Tudo aquilo me causou muita impressão. Como a tendência para a filosofia é coisa que nasce connosco, resolvi colocar questões: será que também tem pêlos púbicos? E o período, terá? Urina? Defeca? Espirra? Se tem lágrimas, porque não tem ramelas? E ranho? Tal como nunca acreditei no sangue azul da aristocracia, sempre desconfiei de santinhas que choram e não espirram.

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