sexta-feira, 14 de abril de 2023

AMOR CÃO

 


   Devemos a Konrad Lorenz (1903-1989), autor de “E o Homem Encontrou o Cão…”, um conhecimento mais profundo dos misteriosos laços que ligam o homem ao cão. A obra, publicada originalmente em 1950, não se cinge ao comportamento canino. Estende-se também à observação dos gatos, examinando dois tipos distintos de relação que os seres humanos cultivaram com estas espécies domesticáveis. Em “Amor Cão e outras palavras que não adestram” (Assírio & Alvim, Março de 2022), Rosa Alice Branco (n. 1950) escreve «a par de Lorenz». Significa isto que os poemas coligidos nesta obra, todos eles introduzidos por uma epígrafe citada do etólogo austríaco, exploram uma aproximação ao discurso científico que reafirma a linguagem poética como lugar de cruzamentos e de inúmeras possibilidades perceptivas do real. Desta aproximação não se infere nenhum tipo de cedência a uma lógica discursiva encerrada em narrativas descritivas. Ante pelo contrário. O próprio título do conjunto é susceptível de várias interpretações, já que a palavra cão surge como adjectivo qualificativo do amor.
   Amor cão pode ser um amor fiel, um amor obediente ou um amor miserável, como dizem ser a vida de cão. A negação do acto de adestrar pressupõe, igualmente, uma dimensão indomesticada ou indomesticável das palavras que este livro se encarrega de sondar em poemas tantas vezes paradoxais e desassossegadores. Não estamos no domínio elegíaco e da lamentação fúnebre que conhecemos de tanta literatura produzida tendo como tema nuclear a figura do cão. Basta pensar em “Amar um Cão” (1990), de Maria Gabriela Llansol (1931-2008), título do qual este “Amor Cão” evidentemente se distancia. Também terá pouco que ver esta poesia com o tom estranhamente intimista de “Canis Dei” (1995), extraordinário livro de Armando Silva Carvalho (1938-2017). O cão de Rosa Alice Branco é uma metonímia do humano nas suas circunstâncias familiares, encenadas por analogia e comparação como uma fábula em que, por um lado, se questiona o que de animal resta ou sobeja no humano e, por outro, o que de selvagem se confunde com o doméstico em quotidianos assaltados pela crueldade e pela violência.
   A palavra analogia surge, de resto, no poema 31 com bastante clareza: «Quando o fim da vida dos cães se aproximou / era difícil distinguir quem era quem: / mais do que o crescimento dos filhos e o dos netos / cresce a semelhança entre os seres que habitam / o mesmo reino entre quatro paredes e um quintal, / escapadelas à rua, passeios de domingo / e outras vivências que só favorecem esta analogia» (p. 49). Lembremos como já em “O Gado do Senhor” (2009, 2011) um poema intitulado “O Cão que Me Tinha” sugeria uma curiosa inversão de papéis. Era o cão que tinha a dona, não a dona quem tinha um cão. Este tipo de inversão aprofunda-se em “Amor Cão e outras palavras que não adestram”, por vezes em poemas irónicos e mordazes como esse que a páginas 36 nos confronta com o dono de um pit bull que «Devia era ter abatido os vizinhos» para não ver um deles a ser fatalmente atacado pelo seu fiel amigo. Vários destes poemas sugerem, pois, que desse encontro entre o homem e o cão tenha havido uma espécie de permuta comportamental. Também os homens têm as suas matilhas, os seus modos de operar colectivamente em torno de uma presa.
   «O cão escava fundo e tapa, ou deixa / buracos escondidos como luras, outros como túneis / de metro ligando cidades e a porta abre ou fecha / mas o cão nunca desiste das palavras que não / adestram. Se o dono o castiga, sofre mais ainda / a dor animal esgravatando o alvoroço do poema que tarda», diz-se logo no primeiro poema. Creio que este livro foi todo ele construído sobre essa «dor animal» que reveste laços familiares, tinge as tribos no seio de uma vida doméstica tantas vezes violentada por raivas cruéis e assassinas, tribos que se unem não por amor ou crença, mas por partilharem uma mesma ameaça (ver p. 15). A ameaça, já agora, pode ter origens diversas. Para um poeta, estou em crer, não deve haver maior do que a normalização do discurso. O preço da domesticação é, pois, o que aqui está em evidência, sem concessões ao sentimentalismo nem a visões acriançadas e banais das relações que mantemos actualmente com o mundo animal em contexto caseiro. Fecho a prosa citando um poema, um dos mais curtos:
 
14.
 
Todos os cães domésticos mais evoluídos, nos quais predomina o sangue do chacal, mantêm toda a vida uma dependência em relação aos seus donos
 
O cão chacal mastiga a obediência em cada gesto
do dono. Ruminantes emocionais vivem
para o dono e na ausência rebentam-se
de espera e vão morrendo de mansinho.
O cão lupino, valores vagabundos o norteiam.
Depois do castigo visivelmente aceite
logo se vai com a cauda levantada
comer mais uma galinha e sai disparado
com a arma no gatilho não vá alguém
armar-lhe o laço e francamente a cadeia
é para os mansos e a moça da janela anda
mesmo a pedi-las, se é que me faço entender.

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