quarta-feira, 10 de maio de 2023

UM POEMA DE AMADEU BAPTISTA

 


LEONARDO DA VINCI: RETRATO DE UMA MULHER DESCONHECIDA, 1490-1495

Se te conhecesse não sei o que diria.

Não sei o que dizer das minhas árvores,
dessa parte do mar que já foi minha.

E ignoro ainda o céu a que pertenço.

Uma parte de mim não corresponde 
ao que de mim pode ser dito.

A minha terra é isto, uma porção de vento
em que algumas palavras permanecem,
alguns fascínios breves.

Direi então de mim o que não sei.

Talvez que sou um homem numa rua de Pavia
onde quem comigo se cruza me pertence
num outro tempo do tempo de que venho.

Penso quem sou e não sei o que dizer-me
e que latitude e longitude se concentram
num ponto único de solidão e medo.

A casa onde habito neste sítio 
é onde poderá estar o mar
que perscruto com tristeza de tudo recordar.

A voz que me acompanha reconhece
esta funda cicatriz na minha carne
e talvez diga de mim o que não posso
neste princípio de tarde em que o ar
se encheu de perfumes e de brisas
que me tocam o espírito e encaminham
para outros lugares mais densos do passado.

A criança que fui ainda não dorme
neste amontoado de cinzas e de mortos
e é bem provável que corra num regato
e busque o fogo azul da cotovia
ou o sabor acidulado de uma folha
 que prendi entre os dentes nesse tempo
sem mais explicações que a inocente
lembrança de um jardim perdido para sempre.

Nesse recôndito lugar alguma coisa adere
à minha pele e faz com que recorde
o que entre o indizível e o inefável
fez de mim o que sou e me arrebata
para um mistério anterior à minha condição
de criança levemente culpada de mistério.

Digo-te: sou mortal e a tarde avança,
e que a ignorância de tudo é tudo quanto sei
acerca de mim mesmo e do que amo,
pese embora eu ame poucas coisas
e o essencial do que procuro
seja o silêncio cerrado a que pertenço
nesta ilusão de ver o mundo transformado
pela antiquíssima fímbria das imagens.

Se te disser o que amo hei-de falar de pedras,
de um bosque de tomilho,
de um pássaro escondido entre a esteva,
da estrela da tarde,
de um cavalo que tenho a nítida sensação de já ter visto
numa vida anterior a esta,
de uma finíssima tira de veludo que guardo entre os cabelos,
de uma cigana que me lê a sina,
de um brilho obscuro que sobre a noite arde
quando nos sonhos o sonho perpetuo,
de algo mais intenso do que o sangue.

Por isso o que  diria se te conhecesse
nunca teria qualquer rumo
porque eu não te conheço e tu não me conheces
e só o amor entre nós logra um sentido
e nada mais inscreve além da evidência
duma deriva do mundo quando a ausência
chega a minha casa e nunca sei
em que céu estão todas as árvores
que ainda me pertencem
e em cujo tronco gravei o teu nome para sempre.

Amadeu Baptista, in Poemas de Leonardo, Edições Esgotadas, Prémio de Poesia Joaquim Pessoa, Outubro de 2018, pp. 37-40.

1 comentário:

Anónimo disse...

Magnífico poema. Mil Ghent