quinta-feira, 1 de junho de 2023

FEE-FI-FO-FUM (1964)

 


Cheguei a casa e meti a correr Speak no Evil, do Wayne Shorter, não sem antes encher uma taça de tinto em memória das pardas que Deus tem. Ando às voltas com a biografia de Pacheco e o muito que tem vindo à mão sobre Vicente, mas quem me ocupa o pensamento são as martas. Pobrezinhas, criaturas tão inermes, para citar Caronte. Vocês não sabem, mas eu digo. Surgem no segundo painel d’ Os Míseros, em texto por mim engendrado com pandemias pop em pano de fundo. Espectáculo a estrear em Julho. Decorrem os ensaios, sob a batuta do maestro Fernando Mora Ramos (ontem, acho que foi ontem, num desses concursos da televisão pública ninguém sabia o que era uma batuta). De onde me saíram aquelas duas, as martas? As que foram abatidas na Dinamarca não falavam senão numa linguagem que há-de ser a delas e a gente não entende, criadas em cativeiro para satisfação das vaidades humanas que não prescindem de peles ao redor do pescoço. Já ninguém se lembra, a pandemia parece ter sido há um século, mas foram 15 milhões as que abateram e aquele número ficou-me na consciência como um cravo incrustado na carne que a gente não consegue espremer. Nisto afluiu a nossa relação com a Natureza, a que vem lá de longe quando, no Génesis, Deus ordenou que dominássemos peixes, aves e todos os animais que andam sobre a terra. As martas que me ocupam, a primeira e a segunda, são de outra estirpe, igualmente descartável, naquele sentido em que a generalidade do mundo se está nas tintas para elas. São exemplares desses 86% de viciados nas redes sociais, vogando ao sabor das tendências, títeres do espectáculo, servas das modas e do ter e do império do efémero e da era do vazio e do que a seguir a essas coisas vem tomando conta das cabeças moldando-as para benefício do consumismo exacerbado que dá cabo do planeta. Têm uma vantagem, são jovens. Podem mudar. E talvez mudem. Sou optimista. Na verdade, julgo que as engendrei a partir de inquietações paternas, que não é o mesmo que dizer paternalistas, ainda que o dicionário de sinónimos do word diga que sim. As martas, duas, podiam ser as irmãs que receberam Cristo, Maria e Marta, contemplação e acção, se não sobrasse somente acção. A contemplação foi com a selfie. É nessa excitação de afazeres que elas espigam, impacientes, com a concentração afectada pelo imediatismo, com a contemplação afectada pela desconcentração, ansiosas como pop music, banana, mastiga e deita fora. A canção dizia chiclete, mas com banana também dá.

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