SOBRE A INSÓNIA
ela trouxe as gatas
conversa com elas
conversa com elas
elas às vezes respondem
quando ela se retira
as gatas conferenciam entre elas
a noite desce em cascata dos abetos
na música opressiva da perfeita simetria dos passeios
alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora no espaço
num destes quartos
um homem alto adormece perto do chão
é tão claro agora que um corpo
carrega sempre consigo
os ângulos mais improváveis
da sua própria queda da sua própria elevação
e gastámos já todas as respostas gentis
na rua anoitece, há ciclistas e joggers
e as mulheres vão às compras
o difícil trabalho da luz avança em sombra
para dentro das casas
retira-se como um amuado deus de inverno
para um cerco rodeado de janelas
para a iluminação de previsíveis cenas domésticas
com mesas postas e meninos que descalçam os botins
palavras recônditas
de um idioma um pouco mais fundo
voltam convidadas pelos fantasmas do sono
repara nos seus pesados casacos de metal
nas suas armas arcaicas
de poetas menores
de um cânone renascentista e do sul
há um lado de riste na insónia
quando a luz eléctrica da noite
se extingue como um oceano contra a manhã
e o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina
também a tristeza são alguns gesto simples
um corpo troce-se na cama
e cai no sono no instante em que o despertador toca
como um náufrago ergue-se no frio
revê-se ao alto na armadilha da aurora
com os seus ângulos de alarme
e no entanto é toda tua esta absurda distância
quando nada toca a solidão
quando é mais secreta a existência
e nenhuma palavra rompe pela barreira
da tua concentração
e o pensamento se vira
como um último avião na curva da pista
antes da aceleração da descolagem
para a quietude de um quarto interior
a muitas milhas de onde tu estás
onde um homem adormeceu
completamente absorto
com os auscultadores nos ouvidos
a ouvir a rádio numa língua estrangeira
Oxford, 22 de Julho de 2017
Tatiana Faia, in Leopardo e Abstracção, Fresca, Dezembro de 2019, pp. 16-18.
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