CENÁRIO 2:
DEUS EXISTE, MAS NÃO É DE CERIMÓNIAS
DEUS EXISTE, MAS NÃO É DE CERIMÓNIAS
O poeta dirigindo-se a Deus:
«Deves embirrar, suponho, quando vês
toda essa gente aglomerar-se em teu nome,
barricar-se atrás do teu nome,
como se o teu nome fosse um baluarte
erguido para travar o passo a incómodos
como por exemplo a precariedade (vulgo morte).
Essa gente não digo que não seja
bem-intencionada. O problema
é que o seu entendimento é limitado
pela própria pequenez,
onde és grande demais para caber.
Essa gente decidiu imaginar-te
como rei de um reino enorme,
diferente para melhor
dos reinos deste mundo.
E acha que a um rei de tanta majestade
é preciso (ou pelo menos aconselhável)
venerá-lo, dirigir-lhe cortesias,
fazer-lhe rapapés, lisonjeá-lo
em cada aresta do dia.
Essa gente acha que gostas de ouvi-los
dizer coisas como 'graças a Deus'
ou 'valha-me Deus' ou 'Deus me livre'
— tal como uma criança gosta de gelados.
Essa gente, no afã de merecer os teus favores
e benfeitorias, não te deixa em paz
e inventou uma coisa a meio caminho
entre labirinto e farmácia, a que chama culto.
A saber: uns quantos exercícios de humildade
(onde às vezes há laivos de hipocrisia),
com que, rebaixando-se,
julga predispor-te a seu favor,
subir dois furos na tua consideração.
Mas na sua ingenuidade ou precipitação
essa gente esqueceu-se de te perguntar
se estavas de acordo. Se o tivesse feito,
terias respondido qualquer coisa como:
«Não vos estejais a incomodar, meus filhos,
passo muito bem sem essas demonstrações.
Contenho-me com saber que reservais um lugar
para mim no vosso interior
e que mantendes desimpedido o caminho para lá,
e preencherei esse lugar enquanto não
me fizerdes sentir que estou a mais.»
A. M. Pires Cabral, in Caderneta de Lembranças, Edições Tinta-da-China, Novembro de 2021, pp. 124-125.
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