terça-feira, 5 de setembro de 2023

AINDA ANTÍGONA

 


Em nenhum momento há em Antígona um projecto revolucionário, uma intenção transformadora da realidade. Ela não quer derrubar o poder, não pretende tomar o poder, não é revolucionária, não se revolta contra Creonte, não tem qualquer intenção de o fazer cair. A desobediência civil de Antígona corresponde a uma subserviência à tradição religiosa, o seu comportamento desviante coloca-a na direcção dos deuses. Antígona é conservadora. Entre Antígona e Abraão não se descortina grande diferença. Leonardo Coimbra via nela, se bem me recordo, uma antecipação da mulher cristã, presumo que no sentido de uma reverência ao sagrado acima de todas as coisas profanas. O que a incompatibiliza com a tirania de Creonte é, portanto, a tirania dos deuses. Os valores da democracia são defendidos por Hémon, a voz do povo, e Tirésias, o cego. Não há dimensão política em Antígona, toda ela é religião, destino. 

Vemos "Édipo Rei", de Pier Paolo Pasolini, e percebemos que a tragédia de Édipo é a nossa tragédia: não podemos escapar ao destino, a medida de todas as coisas. Mortos à nascença, nascidos para morrer, bem nos esforçamos para fintá-lo entregando os dias ao acaso. Para um grego era insultuoso ser "filho da sorte". 

Acho piada a Tirésias. Sendo cego, é ele quem vê melhor. Porque a visão, claro está, não é coisa de olhos. Édipo arranca-os quando finalmente vê. Cumpra-se o destino.

Gosto de Ismena. Na sua fragilidade demasiado humana, dá um passo na direcção do abismo ao defender a irmã. Porém, Antígona, varre-a para canto. Quererá protegê-la? Longe disso. Varre-a para canto porque não tem um projecto colectivo, a sua questão é individual. Ismena chega a sugerir uma acção conjunta, ela busca colectivamente qualquer coisa que percebe estar acima das forças individuais. Poderá haver nela uma grande ingenuidade, ainda assim é do lado humano que actua. Quer o bem dos vivos, contra uma Antígona focada no bem dos mortos.

 Na imagem: Joseph Anton Koch, Édipo e Antígona abandonam Tebas, 1797.

3 comentários:

marsupilami disse...

Algumas reflexões muito interessantes sobre os gregos e a política são de Cornelius Castoriadis. As transcrições dos seus seminários do início dos anos 80 estão em «Ce qui fait la Grèce, tome 1 : D'Homère à Héraclite» e tomos seguintes. Vale muito a pena. O Chris Marker fez um filminho com ele aproveitando (creio) os rushes do seu filme "L'héritage de la chouette". Está aqui.

https://www.youtube.com/watch?v=trTmDu4JHgQ

marsupilami disse...

Aqui está melhor:

https://www.youtube.com/watch?v=kNP4SV9pI5A

hmbf disse...

Obrigado.