É possível que o nome de Jorge Fazenda
Lourenço (Covilhã, 1955) seja mais familiar a alguns leitores pelo trabalho
académico desenvolvido em torno da obra de Jorge de Sena (1919-1978), ou até
mesmo pela tradução de “xix poemas”, de e.e. cummings (1894-1962), do que
enquanto poeta, autor de uma obra inaugurada com “Pedra de Afiar” (INCM, 1983),
não muito extensa, mas consistente, que agora se reúne num único volume
intitulado “Fim de Boca e mais poemas (1981-2023)” (Companhia das Ilhas, Agosto
de 2023). Esta é, portanto, uma excelente oportunidade para conhecer melhor um
labor mantido quase sempre na penumbra ao longo de mais de quatro décadas,
sendo disso excepção, além da estreia supramencionada, livros tais como “Uma
Surda Cegueira” (Fora do Texto, 1990) ou “Cutucando a musa com verso longo e
curto e outras coisas leves e pesadas” (Relógio D’Água, 2009). A estes livros
poucas alterações foram feitas, embora possamos indicar, em certos casos, a
supressão de dedicatórias, títulos que desapareceram para darem lugar a números
que são datas, algumas mexidas na pontuação, na sintaxe, nas maiúsculas que quase
invariavelmente iniciam cada verso.
Os poemas de Jorge Fazenda Lourenço são
geralmente curtos, por vezes depurados até à essência, como neste terceto de “Derivas”
(ASA, 2002): «A mãe é um barco — a minha, claro / Enigma de luz cavada — na
vaga, / Cerzido — a trair a morte» (p. 194). A figura da mãe é recorrente ao
longo da obra. Encontramo-la logo num dos primeiros poemas do livro de estreia,
assim como no início do conjunto “Veredas”. Além da mãe, outras figuras do
núcleo familiar surdem, aqui e acolá, oferecendo aos versos um peculiar registo
afectivo, como nesse poema em que se recorda o avô Gíria ou no magnífico “20110301
(Mandorla)”, reminiscência da tia Maria do Carmo, com a mancha gráfica a formar
uma vulva em que se começa por dizer: «Sim, deus / é mulher, e um / dos seus
nomes é / Elvira» (p. 250). Curioso que possamos afirmar acerca desta poesia o mesmo que
Jorge Fazenda Lourenço em tempos afirmou acerca de e.e. cummings: «um poeta
sentimental que se oculta através de um dispositivo técnico de sabotagem dessa
mesma sentimentalidade.»
Não confundamos, porém, este sentimental
com sentimentalismo, no sentido mais insuportável da exposição emotiva. A
sabotagem do sentimento que também nesta poesia conhece «travessuras
tipográficas» é, antes de mais, garantida por um discurso elíptico, pouco dado
a narrativas confessionais ou memorialistas. A infância surge amiúde, mas já
apagada pelo passar dos anos, com as palavras tendendo para um silêncio e uma
brancura que as aproxima do esquecimento: «Todo / O poema é, ou tende para / Um
destroço do tempo» (p. 149). E se nos livros iniciais se impõe uma paisagem
solar, veraneante, campestre, tingida de referências geológicas e à flora dos
lugares atravessados, mais para o final, ou seja, para os poemas mais recentes,
ganham preponderância o quotidiano, o presente social e político, como no poema
da página 283, sobre a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, ou no da página
169, com outras guerras em pano de fundo, ou em breves apontamentos
epigramáticos de que não resisto a dar como exemplo este “2021 – Ainda um
bairro moderno”: «Racismo sistémico? Nem / Pensar: as mulheres da limpeza / Cá
no bairro são todas / Negras, mas há uma também / Do Leste» (p. 282).
Outra dimensão relevante nestes poemas, igualmente
afectiva, mas de ordem diversa, é a correspondência trocada com outros poetas,
evidente nos conjuntos “Lembranças de São Tomé sem Príncipe, para o príncipe
Ruy Cinatti” e “Treze caprichos para Jorge de Sena”. Outras há que podiam ser
referidas, embora me pareça menos fastidioso sintetizá-las na belíssima elegia
a Raul de Carvalho (1920-1984) com o título “19840904”: «Há manhãs que se abrem
para morrer de vésperas» (p. 76). Estas missivas ligam-se também, de certo
modo, a uma marca que me parece central nesta colheita, a qual suponho ser
correcto resumir como ironização da solenidade com que frequentemente se
embrulha a actividade poética, ironia essa detectável, desde logo, no título da
colectânea, expressão usada em contexto enológico com pomposidade por demais
conhecida. Aqui é título do último poema, o qual se passa a transcrever com os
taninos ainda a aromatizar as papilas gustativas:
Fim de boca
— poeta?
(frente ou verso?)
e o tempo foi
em seu curso
piedoso que não
nada disso
apenas um pouco
inquieto
talvez poeta então
que o mundo
e fui ao café
tomar uma água
— o vinho está-me
interdito —
ver a gente que vai
as raparigas passando
enquanto o poeta
vitoriosas do inverno
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