quinta-feira, 28 de setembro de 2023

FIM DE BOCA


 
É possível que o nome de Jorge Fazenda Lourenço (Covilhã, 1955) seja mais familiar a alguns leitores pelo trabalho académico desenvolvido em torno da obra de Jorge de Sena (1919-1978), ou até mesmo pela tradução de “xix poemas”, de e.e. cummings (1894-1962), do que enquanto poeta, autor de uma obra inaugurada com “Pedra de Afiar” (INCM, 1983), não muito extensa, mas consistente, que agora se reúne num único volume intitulado “Fim de Boca e mais poemas (1981-2023)” (Companhia das Ilhas, Agosto de 2023). Esta é, portanto, uma excelente oportunidade para conhecer melhor um labor mantido quase sempre na penumbra ao longo de mais de quatro décadas, sendo disso excepção, além da estreia supramencionada, livros tais como “Uma Surda Cegueira” (Fora do Texto, 1990) ou “Cutucando a musa com verso longo e curto e outras coisas leves e pesadas” (Relógio D’Água, 2009). A estes livros poucas alterações foram feitas, embora possamos indicar, em certos casos, a supressão de dedicatórias, títulos que desapareceram para darem lugar a números que são datas, algumas mexidas na pontuação, na sintaxe, nas maiúsculas que quase invariavelmente iniciam cada verso.
 
Os poemas de Jorge Fazenda Lourenço são geralmente curtos, por vezes depurados até à essência, como neste terceto de “Derivas” (ASA, 2002): «A mãe é um barco — a minha, claro / Enigma de luz cavada — na vaga, / Cerzido — a trair a morte» (p. 194). A figura da mãe é recorrente ao longo da obra. Encontramo-la logo num dos primeiros poemas do livro de estreia, assim como no início do conjunto “Veredas”. Além da mãe, outras figuras do núcleo familiar surdem, aqui e acolá, oferecendo aos versos um peculiar registo afectivo, como nesse poema em que se recorda o avô Gíria ou no magnífico “20110301 (Mandorla)”, reminiscência da tia Maria do Carmo, com a mancha gráfica a formar uma vulva em que se começa por dizer: «Sim, deus / é mulher, e um / dos seus nomes é / Elvira» (p. 250). Curioso que possamos afirmar acerca desta poesia o mesmo que Jorge Fazenda Lourenço em tempos afirmou acerca de e.e. cummings: «um poeta sentimental que se oculta através de um dispositivo técnico de sabotagem dessa mesma sentimentalidade.»
 
Não confundamos, porém, este sentimental com sentimentalismo, no sentido mais insuportável da exposição emotiva. A sabotagem do sentimento que também nesta poesia conhece «travessuras tipográficas» é, antes de mais, garantida por um discurso elíptico, pouco dado a narrativas confessionais ou memorialistas. A infância surge amiúde, mas já apagada pelo passar dos anos, com as palavras tendendo para um silêncio e uma brancura que as aproxima do esquecimento: «Todo / O poema é, ou tende para / Um destroço do tempo» (p. 149). E se nos livros iniciais se impõe uma paisagem solar, veraneante, campestre, tingida de referências geológicas e à flora dos lugares atravessados, mais para o final, ou seja, para os poemas mais recentes, ganham preponderância o quotidiano, o presente social e político, como no poema da página 283, sobre a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, ou no da página 169, com outras guerras em pano de fundo, ou em breves apontamentos epigramáticos de que não resisto a dar como exemplo este “2021 – Ainda um bairro moderno”: «Racismo sistémico? Nem / Pensar: as mulheres da limpeza / Cá no bairro são todas / Negras, mas há uma também / Do Leste» (p. 282).
 
Outra dimensão relevante nestes poemas, igualmente afectiva, mas de ordem diversa, é a correspondência trocada com outros poetas, evidente nos conjuntos “Lembranças de São Tomé sem Príncipe, para o príncipe Ruy Cinatti” e “Treze caprichos para Jorge de Sena”. Outras há que podiam ser referidas, embora me pareça menos fastidioso sintetizá-las na belíssima elegia a Raul de Carvalho (1920-1984) com o título “19840904”: «Há manhãs que se abrem para morrer de vésperas» (p. 76). Estas missivas ligam-se também, de certo modo, a uma marca que me parece central nesta colheita, a qual suponho ser correcto resumir como ironização da solenidade com que frequentemente se embrulha a actividade poética, ironia essa detectável, desde logo, no título da colectânea, expressão usada em contexto enológico com pomposidade por demais conhecida. Aqui é título do último poema, o qual se passa a transcrever com os taninos ainda a aromatizar as papilas gustativas:
 
Fim de boca
 
— poeta?
(frente ou verso?)
e o tempo foi
em seu curso
piedoso que não
nada disso
apenas um pouco
inquieto
talvez poeta então
que o mundo
 
e fui ao café
tomar uma água
— o vinho está-me
interdito —
ver a gente que vai
as raparigas passando
enquanto o poeta
vitoriosas do inverno
não vem à página

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